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A zona de penumbra no controle de qualidade do combustível que alimenta STJ e STF

Introdução[1]

É necessário enfrentar o “controle de qualidade” do combustível recursal que alimenta o STF e o STJ, isso é, a suficiência argumentativa da fundamentação dos acórdãos recorridos e a idoneidade impugnativa dos REsp e RE.

Há, hoje, um campo de não decisão na matéria, porque o STF mantém interpretação restritiva quanto à violação ao art. 93, IX, da Constituição Federal (Tema 339/RG[2]) e o STJ, em postura de deferência ao Supremo, como regra, evita enfrentar violação ao art. 1.022 do CPC quando a deficiência está relacionada com questão constitucional.

O ponto recomenda possível revisitação da jurisprudência do STF e do STJ, especialmente no contexto da relevância e da repercussão geral.

O problema

Para que o STF e o STJ possam operar de modo adequado, efetivo e tempestivo como cortes de precedentes precisam de recursos idôneos formal e materialmente, capazes de conduzir as mais importantes questões constitucionais e federais infraconstitucionais, que, por sua vez, têm que ter sido enfrentadas pelos tribunais locais ao decidir as causas, em acórdãos suficientemente fundamentados.

Tanto no RE quanto no REsp há uma “clara passagem do caso em si para o caso além de si mesmo[3], uma vez que somente devem ser conhecidos pelo STJ e STF aqueles que permitam o enfrentamento das questões constitucionais dotadas de relevância e transcendência (art. 102, §3º, CF, e art. 1.035, §1º do CPC), e as questões federais relevantes (art. 105, §§ 2º e 3º, da CF). A repercussão geral e a relevância da questão federal pressupõem e intensificam o “controle de qualidade” do combustível recursal que as alimenta.

Na prática, o controle de suficiência argumentativa constitui parte substancial do funcionamento das cortes supremas, ainda que tal atribuição seja exercida monocraticamente e com cautela. Essa função é “indelegável” aos tribunais locais[4], afinal, deter a “última palavra” sobre essa questão de mérito é essencial ao STF e STJ, pois a deficiência da fundamentação local, intencional ou não, pode privá-los do acesso às questões capazes de permitir que desenvolvam o direito.

A zona de penumbra

A doutrina chama a atenção para a “zona de penumbra” entre STF e STJ. Dentre outros, decorre da proximidade teórica inerente a: (i) interpretar à lei federal à luz da Constituição; e (ii) interpretar a própria Constituição[5]. Para além disso, há texto normativo constitucional e de lei federal expressos: o art. 93, IX, da CF e o art. 1.022, II, parágrafo único, II, afirmando a omissão de decisões que incorram em “qualquer das condutas descritas no art. 489, §1º, do CPC”. Na prática, a zona penumbral deve ser analisada pela atual conformação predominante da jurisprudência de ambas as cortes.

STJ e o art. 1.022 do CPC

O STJ reiteradamente conhece de alegações de violação ao dever de fundamentação (arts. 1.022, II, e 489, §1º do CPC), desde que veiculadas a tempo e modo adequados em REsp, ainda que para afirmar a sua não ocorrência[6].

Isso é, mesmo quando desprovê os REsps ou, em AREsp, os conhece para negar provimento ao REsp nessa matéria, a “suficiência argumentativa da fundamentação” é reiteradamente enfrentada. Ainda que o STJ seja bastante restritivo quanto ao provimento, algumas hipóteses se destacam, notadamente quando:

  • diante de omissão sobre matéria fática relevante para a causa de pedir e, consequentemente, para a densificação do sentido da lei federal. Nessa hipótese exerce função “cassacional”, com determinação de lavratura de novo acórdão, dada a impossibilidade de revisão de fatos e provas[7];
  • diante de omissão quanto à matéria jurídica, relacionada ao prequestionamento da violação à lei federal suscitada[8].

A jurisprudência tem se encaminhado no sentido de não ser possível analisar violações quanto à omissão na fundamentação local quando esteja conectada a questão de natureza constitucional. Para o STJ haveria usurpação da competência do STF[9].

O problema é que, ao assim proceder, a corte deixa de enfrentar relevante violação à legislação federal, deixando de atender aos próprios casos de provimento delineados pela sua jurisprudência. O ponto é particularmente grave se retomarmos a necessidade de o STF e o STJ apenas poderem exercer sua competência recursal extraordinária para decidir a partir de causas decididas.

STF e o art. 93, IX, da CF

No STF consolidou-se entendimento no Tema nº 339/RG de que se o acórdão local for fundamentado, ainda que sucintamente, não há necessidade de exame pormenorizado das alegações das partes ou mesmo das provas produzidas.

Em outras palavras, a fundamentação sucinta é suficiente para afastar violação ao art. 93, IX, da CF, mesmo que acórdão realmente tivesse sido omisso quanto à questão relevante, fática e/ou jurídica, apta a infirmar a conclusão exposta na decisão. A aplicação do entendimento tem sido realizada sem grandes aprofundamentos[10][11]. Não é incomum, inclusive, que se afirme que a análise da questão implicaria necessidade de reexame de fatos e provas (Súmula STF 279)[12]. Há, assim, postura tímida quanto à anulação de acórdãos locais, sem se adentrar na discussão sobre a possibilidade de o argumento ou questão omissa ser relevante para o julgamento do caso e, consequentemente, para o enfrentamento da questão constitucional ou federal que dele emerge.

Proposta de compatibilização

non liquet penumbral entre STF e STJ, com duas possíveis soluções, não mutuamente excludentes. A uma, o STJ pode reconhecer que o controle da fundamentação é regulamentado por lei federal, de modo que ao decidir não viola a competência do STF. Nesse sentido, destaque-se que o STJ não enfrenta a questão constitucional, mas sim a completude da fundamentação, de modo a viabilizar inclusive posterior acesso ao STF, sobre o qual o próprio Supremo terá a última palavra[13]. Está-se no âmbito da antessala (completude da fundamentação, com delineamento da questão constitucional) da antessala (juízo sobre a repercussão geral da questão) de potencial decisão futura do STF sobre o mérito de questão constitucional.

A duas, isso não esvazia a possibilidade de o STF enfrentar o tema à luz do art. 93, IX, da CF. Reconhecer violação direta à CF aqui decorre de que é o não enfrentamento de fato, argumento ou tese jurídica relevantes à questão constitucional, que constitui uma possível fonte de esvaziamento de sua competência. A deficiência de fundamentação se transforma em um filtro local e oculto, já que esvazia a causa decidida. Vencido o devido ônus argumentativo dos recorrentes, o STF poderia se aproximar da prática atual do STJ de anular acórdão local quando a omissão puder posteriormente inviabilizar a sua própria jurisdição recursal[14].

No final das contas, é preciso que reconheçamos, no contexto da repercussão geral e da relevância, estar diante de zona de penumbra que merece resposta, para não se inviabilizar, de modo oculto, a nobre função confiada ao STF e ao STJ pela CF.


[1] As ideias deste artigo constam no capítulo “O controle da suficiência argumentativa dos acórdãos locais e dos recursos especiais e extraordinários para formação de precedentes: ensaio sobre o diálogo entre STF, STJ e Tribunais locais (art. 1.030, I, II e V, do CPC, tema no 339 da repercussão geral e o art. 1.022 do CPC)” (coautoria com Rodrigo Rosas), em MENDES, Gilmar Ferreira; PINHEIRO, Victor Marcel (Coord.). Súmulas, teses e precedentes no direito brasileiro: estudos em homenagem a Roberto Rosas. Rio de Janeiro: Editora GZ, 2023, no prelo.

[2] STF, Tribunal Pleno, AI 791.292 QO-RG, Rel. Ministro Gilmar Mendes, julgado em 23/06/2010, DJe divulgado em 12/08/2010: “O art. 93, IX, da Constituição Federal exige que o acórdão ou decisão sejam fundamentados, ainda que sucintamente, sem determinar, contudo, o exame pormenorizado de cada uma das alegações ou provas”.

[3] FACHIN, Edson; KRASSUSKI FORTES, Luiz Henrique, Repercussão geral do recurso extraordinário: dever de demonstração da transcendência e relevância da questão constitucional, Revista de Processo Comparado, São Paulo, V. 7, No. 1, p. 227-252, jan./jun. 2018.

[4] É no mínimo questionável, sob o ponto de vista constitucional, uma delegação total do mérito do controle de idoneidade formal dos recursos pelos Tribunais superiores aos Tribunais locais. Nesse sentido, v.: MARINONI, Luiz Guilherme; KRASSUSKI FORTES, Luiz Henrique, Tema 1.155 submetido ao Plenário Virtual da repercussão geral no STF (parte 2), Revista Consultor Jurídico – ConJur, 29/6/2021, disponível online em , último acesso em 15/5/2023.

[5] MARINONI, Luiz Guilherme. A zona de penumbra entre o STJ e o STF: a função das Cortes Supremas e a delimitação do objeto dos recursos especial e extraordinário. São Paulo: RT, 2019; KRASSUSKI FORTES, Luiz Henrique. Interpretação conforme e interpretação de acordo com a Constituição: precedentes do STJ e controle difuso de constitucionalidade. In: I Congresso Internacional de Direito Constitucional e Filosofia Política (2015) Belo Horizonte. O funcionamento da corte constitucional: A interpretação constitucional, as práticas argumentativas, a Teoria do Direito e o comportamento judicial. Belo Horizonte: Initia Via, 2014. v. 2. p. 156-170.

[6] STJ, AgInt no REsp 1.991.052/MG, rel. Min. Sérgio Kukina, Primeira Turma, j. 06/3/2023, DJe 09/3/2023; STJ, AgInt no AREsp 2.136.760/MT, rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, j. 06/3/2023, DJe 3/3/2023; STJ, AgInt no AgInt no AREsp 2.088.504/RJ, rel. Min. Moura Ribeiro, Terceira Turma, j. em 06/3/2023, DJe 09/3/2023; STJ, AgInt no REsp 2.006.334/PB, rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, j.13/3/2023, DJe de 16/3/2023.

[7] STJ, Resp 1.928.874/SP, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, j. 08/11/2022, DJe 11/11/2022; STJ, AgInt nos EDcl no AREsp 2.050.302/SP, rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, j. 12/12/2022, DJe 16/12/2022; STJ, AgInt nos EDcl no AREsp 2.050.302/SP, rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, j. 12/12/2022, DJe 16/12/2022.

[8] STJ, AgInt no REsp 1.818.528/PR, rel. Min. Francisco Falcão, Segunda Turma, j. 25/4/2022, DJe 28/4/2022.

[9] STJ, AgInt no AREsp 1.948.285/PE, rel. Min. Manoel Erhardt (Desembargador Convocado do TRF5), Primeira Turma, j. 28/3/2022, DJe 30/3/2022; STJ, AgInt no AREsp 1.388.645/AP, rel. Min. Sérgio Kukina, Primeira Turma, j. 30/8/2021, DJe 02/9/2021; STJ, AREsp 1.588.033/RS, rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, j. em 21/11/2019, DJe 19/12/2019. Há julgados pontuais em sentido contrário, como STJ, REsp 1.766.824/CE, rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, j. 21/2/2019, DJe 12/3/2019.

[10] STF, RE 1.292.418 AgR, rel. Min. Edson Fachin, Segunda Turma, j.05/12/2022, DJe 08/2/2023; STF, RE 1.110.955 AgR, rel. Min. Alexandre de Moraes, Primeira Turma, j. 04/10/2021, DJe 13/10/2021.

[11] Há uma pequena tendência de aproximação do Tema nº 339/RG com o comando normativo do art. 489, §1º, IV, do CPC, porém de caráter minoritário, em casos de relatoria da Min. Rosa Weber, em que se afirma que “enfrentadas todas as causas de pedir veiculadas pela parte, capazes de, em tese, influenciar no resultado da demanda”, aí sim “(…) fica dispensando o exame detalhado de cada argumento suscitado, considerada a compatibilidade entre o que alegado e o entendimento fixado pelo órgão julgador”. STF, ARE 1.271.602 AgR, rel. Min. Rosa Weber (Vice-Presidente), Tribunal Pleno, j. 15/12/2020, DJe 15/01/2021.

[12] STF, RE 1394518 AgR, rel. Min. Luís Roberto Barroso, Primeira Turma, j. 03/11/2022, DJe 22/11/2022.

[13] Mesmo completado o acórdão local por determinação do STJ, e devidamente impugnada a violação à CF em futuro RE, o STF ainda assim poderá não enfrentar a questão constitucional devidamente delineada no acórdão local, afirmando a ausência de repercussão geral.

[14] A solução preconizada já foi adotada recentemente pela Segunda Turma, c.f.: STF, ARE 1.210.762 ED-AgR, rel. Min. Nunes Marques, Segunda Turma, j. 17/05/2022, DJe 20/6/2022.

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