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A narrativa equivocada de Lula

Nuno VasconcellosDaniel Castro Branco/Agência O Dia

O encontro entre presidentes sul-americanos, que aconteceu em Brasília na semana passada, como é praxe nesse tipo de evento, deveria ter sido encerrado com um jantar oferecido pelo país anfitrião a seus convidados. Pelo protocolo desse tipo de banquete, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a primeira dama, dona Janja, deveriam receber os demais presidentes, posar para fotos e tratar de temas amenos depois de uma reunião pesada de trabalho. Em cima da hora, porém, o jantar foi cancelado.

Alguns convidados de peso alegaram compromissos inadiáveis e voltaram correndo para seus países. Foi, conforme fontes diplomáticas admitiram a boca pequena, um protesto dos presidentes — que se sentiram vítimas de uma “pegadinha diplomática” por parte do Lula e da diplomacia brasileira. O encontro tinha como objetivo declarado discutir critérios para a cooperação entre os países sul-americanos e aprofundar o diálogo entre eles. Na prática, porém, acabou se reduzindo a um evento de apoio ao ditador Venezuelano Nicolás Maduro e ao regime apodrecido que ele comanda.

Lula abriu a porta e Maduro, que, por seus próprios erros, estava há anos alijado de qualquer evento diplomático relevante, aproveitou e entrou. Com a imagem encardida pela tragédia que seu governo representa, o tirano deveria se dar por satisfeito com sua simples presença no encontro. Não foi o que se viu. A proximidade excessiva e as mesuras que recebeu de Lula causaram desconforto entre os outros chefes de Estado.

Só para recordar: o sucessor do coronel Hugo Chávez foi o último dos convidados a confirmar presença no encontro. Quando apareceu quase “de surpresa”, encontrou um ambiente preparado para que ele brilhasse. Foi recebido pelo anfitrião num encontro bilateral privado, sem que os demais participantes da cúpula, como recomendam os protocolos da diplomacia, fossem sequer informados dessa deferência. E, ao final, ouviu de Lula uma sucessão de elogios que tentaram transformar o homem contra quem existem acusações de narcoterrorismo já comprovadas por organismos internacionais numa vítima de perseguição dos Estados Unidos e do ocidente desenvolvido.

Lula disse que a eleição de Maduro (em que seus principais adversários foram impedidos de concorrer ao posto) era legítima. Disse também que as histórias sobre os desmandos, as prisões políticas, as torturas, os estupros como arma de intimidação política, os 400% de inflação por ano, os cerca de sete milhões de exilados, os mais de 80% de venezuelanos abaixo da linha de pobreza não passavam de uma “narrativa” criada pelos inimigos para desestabilizar a Venezuela. Nem Lula nem Maduro explicaram como o governo tirano de Caracas pretende pagar os quase US$ 2 bilhões que deve ao contribuinte brasileiro por meio de calotes aplicados ao BNDES.

A “narrativa” de Lula foi tão fora de cabimento que alguns dos presidentes fizeram questão de se manifestar. Alguns deles demonstraram seu espanto e deixaram claro que o presidente brasileiro falava em seu próprio nome — nunca em nome do grupo. “Eu (…) tenho uma discordância com o que o presidente Lula disse, de que a situação dos direitos humanos na Venezuela é uma construção narrativa. Não é uma construção narrativa. É uma realidade”, disse o jovem presidente do Chile, Gabriel Boric, na terça-feira. “Se há tantos grupos querendo (…) que não haja presos políticos, o pior que podemos fazer é tapar o sol com a mão”, disse Lacalle Pou, presidente do Uruguai — que em vários momentos deu a Maduro o título que ele de fato merece: ditador.

DUCHA DE ÁGUA GELADA — Se ainda restassem dúvidas a respeito dos métodos utilizados pelo venezuelano para exercer seu poder, elas foram dissipadas pelo comportamento dos jagunços a seu serviço diante dos jornalistas que tentaram entrevista-lo ao final do encontro. Encerrados os trabalhos — e como é comum em qualquer democracia do mundo — os jornalistas que estavam ali para cobrir o evento, inclusive a serviço de emissoras que jamais esconderam sua simpatia por Lula e pelos governantes de esquerda do continente, tentaram se aproximar para obter declarações de Maduro. Foram impedidos pelos capangas escalados para proteger o tirano.

Além dos sicários trazidos pelo ditador, também havia no grupo brasileiros escalados pela missão pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Um detalhe: caso eles tivessem dado aos arruaceiros de 8 de janeiro o mesmo tratamento que deram aos jornalistas interessados em ouvir o déspota venezuelano, o Palácio do Planalto jamais teria sido invadido.

Delis Ortiz, repórter da TV Globo, foi agredida por um soco desferido por um dos leões de chácara de Maduro, provavelmente um brasileiro. A pergunta é: se é assim que os milicianos a serviço do tirano lidam com as pessoas que o incomodam quando ele está num país estrangeiro, a convite de um governo para lá de amigo, como será que agem em seu próprio país? (Ah, sim! O Palácio do Planalto prometeu investigar o episódio e apurar as responsabilidades, mas a possibilidade de se aplicar qualquer punição em quem quer que seja é a mesma de se apontar o culpado pelo assassinato do menino Carlinhos ou de se localizar o corpo da socialite Dana de Tefé.)

Seja como for, ficou claro, diante de tudo o que se viu no encontro, que Lula ultrapassou todos os limites do bom senso diplomático ao cobrir o déspota venezuelano de elogios e dar a ele uma posição de destaque sem ao menos consultar os outros convidados. Além de Boric e Pou, Mario Abdo Benitez, do Paraguai e Guillermo Lasso, do Equador, também não esconderam seu desconforto diante dos rapapés e dos salamaleques dirigidos por Lula ao tirano.

Para um presidente que age como se almejasse ser reconhecimento como um grande líder mundial, o erro estratégico de Lula significou uma ducha de água gelada sobre sua pretensão de ser, pelo menos um influenciador dos destinos sul-americanos. Será que os presidentes que caíram na pegadinha atenderão com a mesma presteza a um novo convite do presidente brasileiro? Claro que não! Será que eles, que se sentiram ludibriados, não pensarão duas vezes antes de compartilhar novamente uma mesa com Lula? Claro que sim!

O mais provável é que o encontro represente um retrocesso, e não um avanço, nas discussões sobre a cooperação continental — e por mais que Lula insista em falar em temas afastados da realidade (como a ideia sem pé nem cabeça de uma moeda regional comum), o certo é que o Brasil tem sido visto com uma reserva cada vez maior pela comunidade internacional e pela maior parte dos vizinhos.

OLHOS NO FUTURO — As opiniões de Boric e Pou precisam ser vistas à luz de pelo menos três aspectos que, se não forem incluídos com urgência na pauta do Itamaraty, deixarão o Brasil cada vez mais isolado dos países que mantêm os olhos voltados para o futuro — e não para o passado, como é o caso de Lula, do argentino Alberto Fernandez e, claro, do tirano Maduro. O primeiro e mais escancarado desses pontos já foi observado por muita gente que acompanhou o episódio: os dois ocupam posições opostas no chamado espectro político, mas, mesmo assim, expressaram um ponto de vista parecido a respeito do déspota.

Enquanto um deles, o uruguaio, é um líder de direita, o outro, o chileno é de esquerda. Nenhum deles, porém, se acanhou ao deixar claro o que pensa do caudilho venezuelano. E, por mais que Lula queira, nenhum deles está disposto a render ao regime de Caracas homenagens que destoam de tudo o que as principais economias do mundo pensam de Maduro e de seu regime narcoterrorista.

O segundo ponto diz respeito aos motivos que levam um e outro a engrossar o coro de críticas a Maduro. Independentemente da forma com que cada um deles enxerga o mundo, os dois presidentes são pragmáticos e põem os interesses econômicos de seus países adiante de suas preferências políticas (o que não tem sido o caso de Lula desde que voltou ao Palácio do Planalto).

Além de demonstrarem respeito pelas próprias biografias, ao se recusarem a chamar de democracia uma das ditaduras mais desumanas do Século 21, os dois deram um recado a seus parceiros comerciais. Ao contrário de Lula, eles não estão dispostos a conduzir suas economias por critérios ideológicos nem a comprometer a saúde de seus mercados para tentar salvar um país que, até pouco tempo, era um dos mais promissores do mundo e que foi empurrado à miséria por ação de seus governantes.

Ambos têm bons motivos para agir dessa maneira. Uruguai e Chile são as duas economias mais abertas da América do Sul. O Chile tem 24 acordos comerciais bilaterais altamente vantajosos assinados com outros países — o principal deles com os Estados Unidos. E o Uruguai, neste momento, está negociando pelo menos dez acordos fora do âmbito do Mercosul.

O terceiro e último motivo é cronológico: Boric, com 37 anos, e Pou, com 49, são os dois mais jovens entre os presidentes reunidos em Brasília — sendo que o seguinte da lista, Benitez, do Paraguai, com 51 anos, também demonstrou desconforto diante da posição de Lula. Por menos que se pretenda dar importância a essa evidência, é nítido que ambos fazem parte de uma geração de líderes que não cresceu no clima na guerra fria nem do ambiente dicotômico das ditaduras latino-americanas.

Boric sofreu um choque de realidade, meses depois de eleito, quando viu o povo chileno rejeitar de forma eloquente a ideia de baixar uma nova Constituição que afastava o país dos princípios da economia de mercado. Derrotado, passou a dar a preferência a mudanças mais suaves no mercado interno — sem, no entanto, criar dificuldades para a liberdade econômica que é a alma da economia chilena.

CHAPOLIM COLORADO — O Brasil ganhará muito se Lula deixar de tentar reescrever a história com base em sua ideologia e passar a chamar as coisas pelo nome que elas têm. Maduro não é, como disse o presidente ao saudar o “companheiro”, um líder eleito de forma legítima. E a tirania comandada por ele está longe de ser “vítima de preconceito”. Ao dizer tais impropriedades, Lula se viu sozinho num dos terrenos que ele tinha tudo para liderar: até os mais respeitados organismos internacionais que se acompanham situação da América Latina — inclusive alguns que a turma do PT adorava incluir entre os críticos da prisão de Lula, em 2018 — classificam Maduro como um déspota sem limites, um tirano cruel, o chefe de um governo que suga o povo para se manter no poder. Ou como um autocrata prepotente e caricato que, para forçar a população venezuelana a cultuar sua imagem, manda produzir e distribuir bonecos de plástico, que o apresentam como um super-herói.

Não! Isso não é piada! No Natal de 2022, o governo da Venezuela mandou fabricar na China 13 milhões de bonecos do “Super Bigode” — personagem de um desenho animado inspirado no ditador e apresentado pela TV estatal venezuelana desde 2021— e de “Cilita”, uma “super-heroína” inspirada em Cilia Flores, mulher do ditador que, segundo se comenta, dá palpite em tudo o que se passa no Palácio de Miraflores e manda mais do que muitos ministros…

Assim como o herói dos gibis Super-Homem, o personagem tem capa, usa uma roupa de malha colada ao corpo e não dispensa, inclusive, a sunga sobre as calças. Ou seja, para “combater” o imperialismo norte-americano — a quem ele, Lula e os aliados que têm entre os ditadores do continente culpam pela tal “narrativa preconceituosa” contra a Venezuela — Maduro foi buscar justamente nos Estados Unidos o herói que inspira sua “bravura”. Mais ridículo, impossível!

Para não sair do campo dos personagens de ficção, Lula parece ter agido, no caso do encontro de Brasília, como o Chapolim Colorado, o anti-herói atrapalhado das comédias mexicanas. Assim, ele esperou que os outros presidentes “não contassem com sua astúcia” e se sentissem compelidos a tratar Maduro com a mesma generosidade com que ele trata. Talvez ele esperasse que os outros ficassem calados diante da tentativa de promover a reaproximação do pária venezuelano com a comunidade internacional.

Não ficaram calados porque, em pleno Século 21, ninguém está disposto a abdicar de seus próprios interesses em nome de uma aliança que os obrigaria a conviver com um governo do qual o mundo desenvolvido quer distância. É bom o país pensar nisso — sob pena de consolidar, cada vez mais, a imagem de “anão diplomático” que tem sido usada para qualifica-lo nos últimos meses.

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