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Antitruste em tempos de incerteza

Garantir o cumprimento da legislação antitruste tem se relevado uma tarefa, por vezes, difícil mesmo para aquelas empresas mais bem intencionadas. Há uma razão ligada à própria legislação antitruste por trás dessa dificuldade: o fato de que os ilícitos antitruste podem ser definidos pela possibilidade de prejudicarem a livre concorrência, independentemente de terem ou não por objeto causar danos à concorrência e independentemente da culpa de quem os pratica[1] 

De fato, para além de questões envolvendo o contexto específico de determinados setores (que podem apresentar características de maior risco de configuração de ilicitudes), e também a própria cultura organizacional de determinados agentes (que pode incentivar pessoas a tomar decisões de negócio mais arriscadas), muitas vezes a dificuldade em garantir o cumprimento da lei de defesa da concorrência decorre mesmo da impossibilidade de saber, de antemão, se uma determinada conduta terá ou não o potencial de gerar efeitos negativos no mercado e poderá, portanto, ser considerada uma conduta anticompetitiva.  

Na prática, a tarefa de antever o potencial anticompetitivo de uma conduta no Brasil no mais das vezes é bastante complexa. Tomar decisões comerciais importantes com base nesse exercício hipotético é mais difícil ainda. Afinal, de um lado existe a dificuldade de que é possível interpretar a lei no sentido de que a mera potencialidade de efeitos seria um problema. De outro existe também a questão de que o que importa na verdade são os efeitos líquidos da conduta na livre concorrência (i.e. o balanço entre efeitos positivos e negativos). Ou seja, em princípio, mesmo uma conduta que elimine concorrentes de um dado mercado pode ser considerada lícita se for capaz de produzir eficiências (a título de inovação, por exemplo) que sejam repassadas ao consumidor. 

Nos casos em que a dúvida impera, alguns projetos podem ser abandonados em nome da cautela. É compreensível que seja assim. Diante do risco de sanções, pecuniárias e não pecuniárias, tão pesadas como aquelas previstas na legislação antitruste[2] – isso sem contar o dano reputacional de se ver envolvido em uma conduta anticompetitiva – é natural que a primeira opção seja tentar afastar esse risco. 

O problema é que essa cautela pode por vezes ser obtida às custas de um arrefecimento da concorrência. Empresas dominantes podem deixar de adotar estratégias comerciais mais inovadoras e disruptivas, optando por “play it nice” diante do risco de que estratégias mais agressivas e com maior potencial de excluir concorrentes do mercado sejam consideradas abusivas no contexto de uma eventual discussão dos seus efeitos em um processo no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Isso é um problema tanto para as empresas, que deixam de adotar condutas que podem ser legítimas, como para a própria autoridade de defesa da concorrência (e a coletividade, de maneira geral) que vê a concorrência ser reduzida, que é justamente o que a lei de defesa da concorrência buscava evitar.  

Essa dificuldade em encontrar a priori um limite claro para a licitude das condutas no direito da concorrência não é uma falha do sistema brasileiro. Ela na verdade está relacionada a um dilema fundamental do antitruste: o processo de concorrência pode resultar na eliminação (temporária) da concorrência.  

Infelizmente, como acontece com todo dilema, esse também não tem solução inequívoca. Diante dele, algumas escolas dentro do antitruste defendem uma abordagem mais intervencionista, enquanto outras são mais céticas com relação aos benefícios de longo prazo da intervenção. Esse é o pano de fundo, por exemplo, de muitas das discussões atuais envolvendo as chamadas big techs. 

Deixando de lado o mérito do debate, o fato é que dependendo do contexto histórico e dos movimentos de mercado, as respostas a esse dilema do antitruste vão pender para atuações mais ou menos intervencionistas das autoridades de defesa da concorrência ao redor do mundo. Historicamente, já houve períodos de maior consenso sobre a desnecessidade de intervenções em nome da eficiência econômica. O cenário agora é menos claro, o que naturalmente aumenta a incerteza com a qual empresas tem que lidar. Em períodos de maior consenso sobre a necessidade ou não de intervenção, é maior também o espaço de certeza para cada empresa definir sua atuação. Já em períodos de maior debate e de revisão de paradigmas, como é o nosso, esse espaço de certeza infelizmente se reduz.  

Tudo isso tem implicações relevantes no desenho de programas de compliance. Se em tempos de maior certeza sobre os limites da atuação lícita no antitruste, o foco dos programas de compliance acaba sendo garantir que tais limites sejam conhecidos e respeitados, em tempos de maior incerteza, como agora, os programas de compliance podem ter o papel de contribuir para que essa incerteza não seja paralisante. Como fazer isso? Um caminho promissor é focar nos procedimentos. Em tempos de incerteza, um programa de compliance bem desenhado deve ser focado em estabelecer procedimentos que ajudem na tomada de decisão.  

Em primeiro lugar, isso significa, claro, estabelecer procedimentos que garantam que a variável concorrencial seja um fator adequadamente considerado na tomada de decisão. Isso passa, por exemplo, pela criação de regras para identificar situações de risco e pelo estabelecimento de fluxos de decisão aplicáveis a essas situações. É importante que seja fácil para qualquer interessado reportar situações de dúvidas, e que jurídico e compliance sejam ouvidos na definição de estratégias de maior impacto. 

Contudo, identificar adequadamente os riscos não é suficiente. Como visto, sobretudo em tempos de incerteza, a mera ciência dos riscos pode ter um efeito paralisante indesejado. É preciso também buscar inserir na rotina de compliance das empresas mecanismos que as ajudem a navegar em situações de maior incerteza caso essa seja a opção do negócio. Para isso, além das especificidades de cada empresa e de cada mercado – que só podem ser equacionadas olhando para situações concretas – no plano mais geral, fazer com que os procedimentos de tomada de decisão das empresas levem em conta a própria forma como ilícitos anticoncorrenciais são definidos para lidar com as dificuldades que essa definição apresenta pode ser um caminho interessante.  

Ou seja, sabendo-se, por exemplo, que condutas podem ser consideradas anticompetitivas tanto por seu objeto como por seus efeitos, é possível pensar em procedimentos decisórios que sejam capazes de gerar provas positivas (tanto de objetivos legítimos como de efeitos positivos esperados) que poderiam ser usadas em discussões no âmbito de processos no Cade. O próprio Cade deu indicativos recentes da importância desse tipo de registro para a tomada de decisão sobre a existência de infração à concorrência[3]. Da mesma forma, garantir que os procedimentos de tomada de decisão contem com o registro das medidas alternativas consideradas (e razões da sua não escolha), ou mesmo da inexistência de alternativas, também pode ser útil. Evidentemente, todos os registros devem ser feitos com atenção em relação à forma e à linguagem para que não possam gerar interpretações adversas. 

Com movimentos nessa direção, é possível se antecipar a questões que podem surgir em uma discussão sobre os efeitos da conduta na hipótese de uma eventual investigação pelo Cade, permitindo que a empresa tenha subsídios para demonstrar o caráter pró-competitivo da sua atuação, reduzindo assim os riscos de uma condenação. Infelizmente o risco dificilmente é completamente eliminado, mas ele pode ao menos deixar de ser paralisante, para aqueles que assim o desejarem.


[1] Nos termos exatos da Lei 12.529/2011, constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:
I – limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa;
II – dominar mercado relevante de bens ou serviços;
III – aumentar arbitrariamente os lucros; e
IV – exercer de forma abusiva posição dominante. 

[2] Nos termos do artigo 37 da Lei 12.529/2011, para as empresas as multas podem chegar a 20% do valor do faturamento bruto dgrupo ou conglomerado obtido, no último exercício anterior à instauração do processo administrativo, no ramo de atividade empresarial em que ocorreu a infração, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando for possível sua estimação. Além disso, conforme previsto no artigo 38, quando assim exigir a gravidade dos fatos ou o interesse público geral, poderão ser impostas as ainda outras penasque incluem: (i) a proibição de contratar com instituições financeiras oficiais e participar de licitação tendo por objeto aquisições, alienações, realização de obras e serviços, concessão de serviços públicos, na administração pública federal, estadual, municipal e do Distrito Federal, bem como em entidades da administração indireta, por prazo não inferior a 5 (cinco) anos; (iia cisão de sociedade, transferência de controle societário, venda de ativos ou cessação parcial de atividade; (iiia proibição de exercer o comércio em nome próprio ou como representante de pessoa jurídica, pelo prazo de até 5 (cinco) anos. 

[3] Processo Administrativo 08700.011835/2015-02, por exemplo.

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