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A PEC 9/23 e a tentativa de justificar o injustificável

Atualmente, no Brasil, os partidos precisam apresentar um mínimo de 30% de candidaturas de cada gênero nas eleições majoritárias (para deputados federais e estaduais e vereadores), o que historicamente representa um mínimo de 30% de candidatas mulheres. Adicionalmente, os partidos também devem investir nas campanhas de mulheres um mínimo de 30% dos recursos públicos destinados às campanhas eleitorais – em outras palavras, a porcentagem dos recursos públicos destinados às campanhas das mulheres deve ser a mesma porcentagem de candidatas mulheres nas eleições proporcionais.

No entanto, neste momento está sendo apreciada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados a PEC 9/23. Essa proposta de emenda à Constituição pretende alterar o texto introduzido pela Emenda Constitucional 117/2022 no que se refere à aplicação de sanções aos partidos que não preencheram a cota mínima de recursos ou que não destinaram os valores mínimos em razão de gênero e raça em eleições, assim como nas prestações de contas anuais e eleitorais. O efeito prático disso é a anistia aos partidos que não destinaram o mínimo de 30% de recursos públicos para as campanhas eleitorais de mulheres.

Seria possível desenvolver diversos argumentos sobre a injustiça ou a inconstitucionalidade de uma Emenda Constitucional nesses termos. Ou também sobre a vedação ao retrocesso em matéria de direitos fundamentais. Ou, ainda, sobre a necessidade de questões contra-majoritárias como essa serem decididas, em última análise, pelo Poder Judiciário, porque os parlamentares não estariam inclinados a legislarem contra seus próprios interesses.

No entanto, esse artigo vai se limitar à análise da argumentação, supostamente jurídica, apresentada pelo deputado Paulo Magalhães (PSD-BA) como justificativa da PEC.

Ao defender a proibição da aplicação de sanções aos partidos políticos por descumprimento da cota mínima de recursos para as candidaturas de mulheres até as eleições de 2022 e pelas prestações de contas anteriores a 5 de abril de 2022, o deputado argumenta que os partidos não teriam tido tempo suficiente para conseguirem aplicar a norma. Como essa obrigação teria sido criada pela EC 117/2022 – que foi promulgada em 5 de abril de 2022 – os partidos já estariam envolvidos com o processo eleitoral do último ano e não teriam tido tempo de se adequar.

Até esse ponto o argumento parece coerente. Tanto é que no Direito Eleitoral vigora o princípio da anualidade eleitoral. Dessa forma, uma lei que altera o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, contudo não será aplicada à eleição que ocorrer em até um ano da data de sua vigência (art. 16 da Constituição Federal). O objetivo aqui é que todos os envolvidos no processo eleitoral estejam plenamente cientes das regras do jogo antes que ele comece, podendo, assim, preparar-se adequadamente. 

Isso significaria que se uma lei que altera o processo eleitoral entrasse em vigor no dia 5 de abril de 2022, não produziria efeitos nas eleições ocorridas em 2022. Contudo, antes que, apressadamente, diga-se que esse é exatamente o caso da EC 117/2022 é preciso verificar dois elementos: se ela traz uma alteração ao ordenamento jurídico e se essa alteração se dá no processo eleitoral.

A EC 117/2022:

“Altera o art. 17 da Constituição Federal para impor aos partidos políticos a aplicação de recursos do fundo partidário na promoção e difusão da participação política das mulheres, bem como a aplicação de recursos desse fundo e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e a divisão do tempo de propaganda gratuita no rádio e na televisão no percentual mínimo de 30% (trinta por cento) para candidaturas femininas”.

De acordo com essa apresentação da EC 117/2022 ela de fato altera o texto do art. 17 da Constituição Federal. Mas isso não significa, automaticamente, uma inovação no ordenamento jurídico, que não é composto apenas pelas normas constitucionais, mas também por normas infraconstitucionais e pela jurisprudência. E é exatamente na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que será possível verificar que essa obrigação trazida pela EC 117/2022 já existia no ordenamento brasileiro antes de 2022. 

Em 2018, foi apreciada pelo STF a ADI 5617, que teve como relator o ministro Edson Fachin. A Ação Direta de Inconstitucionalidade questionava a constitucionalidade do disposto no art. 9º da Lei 13.165, de 29 de setembro de 2015, solicitando também que o STF indicasse a interpretação que seria adequada ao dispositivo, considerando as premissas constitucionais de igualdade material de direitos políticos, assim como o propósito da reserva de vagas por gênero. O dispositivo questionado previa: 

“Art. 9º. Nas três eleições que se seguirem à publicação desta Lei, os partidos reservarão, em contas bancárias específicas para este fim, no mínimo 5% (cinco por cento) e no máximo 15% (quinze por cento) do montante do Fundo Partidário destinado ao financiamento das campanhas eleitorais para aplicação nas campanhas de suas candidatas, incluídos nesse valor os recursos a que se refere o inciso V do art. 44 da Lei n o 9.096, de 19 de setembro de 1995”.

Seguindo o voto do relator, a maioria dos ministros do STF entendeu pelo total provimento da ADI, para declarar a inconstitucionalidade da limitação temporal prevista no artigo acima e lhe conferir interpretação conforme a Constituição. Nesse sentido, o percentual de recursos destinados às campanhas de mulheres, provenientes do montante do fundo partidário que for destinado às eleições, deve ser equivalente ao percentual de candidatas mulheres registradas — cumprindo o mínimo legal de 30%.

Após a decisão do STF na ADI 5617, o TSE apreciou uma consulta (Consulta 0600252-18.2018.6.00.0000-DF), em que senadoras e deputadas federais questionavam quanto à extensão do entendimento do STF: se o mesmo válido para o montante do fundo partidário destinado às eleições era também aplicável ao fundo eleitoral e à propaganda eleitoral gratuita em rádio e televisão. 

Em face dessa consulta o TSE decidiu que, para além dos partidos políticos terem que observar a porcentagem das candidaturas de cada gênero — considerando o mínimo de 30% previsto no art. 10, §3º da Lei 9.504/97 — para a destinação do montante do fundo partidário aplicado às campanhas eleitorais, também deveria ser observada a mesma lógica na destinação dos recursos do fundo eleitoral e do tempo da propaganda eleitoral gratuita veiculada no rádio e na televisão.

A partir desse momento, passou a vigorar explicitamente a obrigação dos partidos destinarem um mínimo de 30% dos recursos públicos aplicados nas campanhas eleitorais, para campanhas de mulheres. Isso foi em 2018.

Tanto já existia essa obrigação no ordenamento jurídico brasileiro antes de 2022, que a própria EC 117/2022 anistiou os partidos que tenham descumprido essa obrigação até então. Seu artigo 3º é expresso nesse sentido: 

“Art. 3º Não serão aplicadas sanções de qualquer natureza, inclusive de devolução de valores, multa ou suspensão do fundo partidário, aos partidos que não preencheram a cota mínima de recursos ou que não destinaram os valores mínimos em razão de sexo e raça em eleições ocorridas antes da promulgação desta Emenda Constitucional”.

Bom, se é necessário uma Emenda Constitucional para anistiar o descumprimento de uma norma, é porque essa norma existe. É no mínimo irônico afirmar que a EC 117/2022 criou a obrigação dos partidos destinarem para as campanhas de mulheres ao menos 30% dos recursos públicos utilizados nas eleições. Isso considerando que é essa mesma emenda que anistiou os partidos que não tinham cumprido anteriormente com essa determinação.

Logo, apesar da EC 117/2022 ter alterado a redação do art. 17, CF, ela não alterou o processo eleitoral. A obrigação, que ela supostamente teria criado, já existia desde 2018.

Isso sem mencionar que a prática de anistiar partidos que não destinam os devidos valores para ações que objetivam aumentar a presença das mulheres na política não é uma novidade. Antes mesmo da anistia promovida pela EC 117/2022, houve a anistia dos partidos que não investiram 5% dos recursos do fundo partidário para promover a participação feminina na política, pela Lei 13.831/2019. E, agora, mais uma anistia está em trâmite, a PEC 9/23. 

Com tantas anistias, cresce o questionamento quanto à utilidade de uma legislação eleitoral que determina a reserva de vagas para as mulheres nas eleições e a proporcional destinação de recursos, se, no ano seguinte, será aprovada nova anistia aos partidos que descumprirem a norma eleitoral. E isso sob a frágil justificativa de falta de tempo para a adequação à norma.

E o motivo de serem criadas justificativas precárias como essa é a simples inexistência de qualquer argumento constitucionalmente adequado para operar a engenharia político-eleitoral pretendida. Já passou da hora dos partidos políticos, de todos os espectros ideológicos, desenvolverem medidas efetivas de inclusão das mulheres na política. Começando pelo simples cumprimento da legislação eleitoral e da reserva de vagas. Como dito pela ministra Cármen Lúcia, em sessão do TSE, não se trata de uma questão de empatia com as mulheres que se candidatam, mas de constitucionalidade.

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