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O talento e a potência da cineasta belo-horizontina Gabriela Matos

Responsável por parte da fotografia do filme “Amanhã”, de Marcos Pimentel, Gabriela Matos conversou com o Culturadoria sobre carreira e projetos

Patrícia Cassese | Editora Assistente

Em cartaz na cidade, o filme “Amanhã”, de Marcos Pimentel, mostra a vida de dois irmãos nascidos no Morro do Papagaio – Júlia Maria e Cristian de Miranda – em dois momentos de vida, separados por um intervalo de 20 anos. Assim, primeiramente na infância, em 2002, bem como duas décadas depois, ou seja, em 2022, com eles já adultos. Neste último recorte, entre as várias novidades, uma, em particular, chama atenção: o fato de a equipe que acompanhou o documentarista ser majoritariamente formada por profissionais oriundos da região. E, entre eles, está a cineasta e fotógrafa Gabriela Matos. Assim, nesta semana na qual o mundo comemora o Dia Internacional da Mulher, o Culturadoria foi conversar com essa moça de fibra e potência, que, em 2018, lançou o documentário “Favela em Diáspora” (disponível no YouTube), além de ser uma das articuladoras do festival Papagaio Cultural.

A conversa, claro, começou sobre o filme “Amanhã”. Aliás, Gabriela confessa que, ao receber o convite de Marcos Pimentel, para integrar a equipe, a primeira reação que a invadiu foi “receio”. “Muito receio, para ser sincera. Mas, daí, nós dois tivemos muitas conversas. O que acontece é que aqui, na comunidade, vemos um comportamento recorrente. As pessoas vêm aqui, contam histórias, de alguma forma se apropriam delas e, depois, não voltam mais para dar um retorno na comunidade. Ou seja, não têm esse cuidado”, explica ela, que, para os mais íntimos, é conhecida como Gabi.

Escuta

Desse modo, ela admite que, naquela etapa inicial, ficou, sim, com o pé atrás, “muito nesse sentido de preocupação mesmo”. Mas, bem, Marcos Pimentel insistiu enfaticamente para que Gabriela entrasse para o projeto. “Ele me explicou muito sobre o que era o filme, o que queria. Assim, durante o processo de pré-produção, mesmo ainda com receio, fui me inteirando das ideias que ele tinha. Preciso destacar que o Marcos foi um diretor maravilhoso, no sentido de prestar atenção no modo como as pessoas queriam ser mostradas na tela. Desse modo, com o tempo, isso foi me dando segurança”, contextualiza.

Respeito e cuidado

Ao fim, Gabriela estava totalmente envolvida com o processo. “Foi muito massa, muito importante participar, principalmente por essa questão de cuidado (com o que estava sendo retratado na tela). Foi uma construção muito bonita, no final das contas. De certa forma, a história daquelas pessoas (mostradas no filme), mesmo que seja distinta da minha, tem alguns pontos em comum. Como falei com ele (com Marcos), se, após as filmagens, a equipe fosse embora, nós, moradores, permaneceríamos aqui. Assim, não queríamos mostrar uma coisa estereotipada”.

No final das contas, Gabriela avalia que, no timão da empreitada, Pimentel foi extremamente respeitoso com a comunidade. “Respondendo mais objetivamente, o que me fez aceitar foi a percepção desse cuidado que ele teria com a história. (Saber) que não era intenção dele mostrar de forma negativa a história daquelas pessoas, e, sim, com respeito. E construir (a narrativa) junto a elas”.

Nuances

Quanto ao resultado, Gabriela analisa: “Eu achei muito lindo, sabe? E, apesar de todos os problemas que são mostrados, todos os desencontros, é muito real. O filme fala sobre identidade, sobre encontros e desencontros. Aponta que nem tudo é só preto ou só branco. Mostra todas as nuances da vida. É um filme que tem muita verdade”, avalia ela.

Outro momento do filme "Amanhã", mostrando o personagem Cristian (Frame)
Outro momento do filme “Amanhã”, mostrando o personagem Cristian (Frame)

Ao narrar a realidade daquela família, liderada pela mãe dos jovens, Cristiana, que também marca presença na tela, Gabriela entende que o filme “Amanhã”, de certa forma, toca toda a comunidade que vivencia aquela realidade. “Porque a gente, no Morro do Papagaio, está cercada por bairros nobres. Então, isso de estar, ao mesmo tempo, tão próximo e tão longe, faz parte do nosso dia a dia. Desse modo, ‘Amanhã’ é um filme que fala muito sobre a verdade e, do mesmo modo, sobre identidade, individualidade. De como cada um se vê, de como cada um quer se ver. Sobre projeções, sobre sonhos e sobre família. É um filme muito lindo. Muito, muito, lindo”.

Confira, a seguir, outros trechos da entrevista com Gabriela Matos

Fotografar Júlia

“Então, na verdade, eu não conhecia a Júlia Maria (Gabriela conta, no filme, que já conhecia Cristian, pela movimentação dele dentro da comunidade). E fotografá-la foi um presente. Aconteceu dentro da série PapaGaia, que traz a relação da mulher favelada com o espaço em que habita. Ela viu fotos do projeto e se interessou em fazer. Foi muito bonito, isso de (o interesse) ter vindo dela. Ou seja, não foi a gente que sugeriu”, comenta Gabriela. (Abaixo, frame do filme que mostra Júlia sendo fotografada por Gabriela)

Projeto PapaGaia

A cineasta conta que sempre é muito emocionante fotografar as mulheres. “Porque, às vezes, elas não se veem, sabe? Ainda mais dentro da comunidade. (A coisa de) Não conseguir ver beleza, às vezes, na própria casa ou nesse espaço. Então, a auto-estima vem com essa relação. Tanto com a própria imagem quanto com a relação desse espaço de pertencimento. Todas as fotografias que já fiz do projeto me emocionaram, me emocionam (Gabriela conta que a série começou em 2016)”.

Na verdade, Gabriela conta que já tem um tempo que não participa do projeto, por conta de outros compromissos. “Mas um dos retornos que mais me emocionaram, com certeza, foi esse da Júlia. Porque geralmente eu vou até a pessoa e faço o convite. Mas, nesse caso, foi uma vontade dela. Ela bateu o olho e falou: “Eu quero fazer, eu quero me ver assim também”. Acho que isso é muito forte, é muito bonito”.

Paixão pelo cinema

Gabriela lembra ser de uma geração na qual os pais não estavam exatamente presentes o tempo todo em casa, por causa de trabalho. “Então, eu sempre assisti muito à televisão, sempre tive muita conexão, principalmente com clipes. E meu pai sempre gostou muito de cinema. Assim, quando ainda haviam locadoras, ia sempre, buscar filmes. Já o meu tio era fotógrafo, inclusive de registrar eventos aqui, no Morro, como o Réveillon da Barragem. Na verdade, meu pai também era (fotógrafo). Fez curso, mas registrava mais a família”.

Lição materna

Já a mãe de Gabriela Matos é comerciante. “E ela sempre foi muito, muito, muito querida pelas pessoas”. Não é difícil adivinhar o motivo. ‘Minha mãe sempre insistiu na importância de tratar bem todo mundo. Mesmo que a pessoa entre no estabelecimento dela com apenas cinco centavos, precisa ser bem tratada. É um princípio de dignidade mesmo. Do mesmo modo, a coisa do acolhimento. Portanto, isso ficou muito marcado na minha memória afetiva”.

Gabriela fala que o cuidado que a mãe dedica a quem entra no estabelecimento não se resume aos clientes. “Tanto que tem gente que entra lá e, na verdade, nem tem o objetivo de comprar nada, só vai mesmo para tomar um café. Isso é muito doido, de como se cria um vínculo com as pessoas, um laço. Essa ideia dos cinco centavos passa muito por isso: todo mundo tem que ser tratado da mesma maneira, independentemente de quanto tem, sabe?”.

Renca Produções

De qualquer modo, prossegue Gabriela, o contato tanto com a imagem estática quanto em movimento sempre pontuaram a caminhada da belo-horizontina vida afora. “E (o interesse) só foi crescendo em mim. Porém, em dado momento, o processo foi momentaneamente interrompido porque, aos 17 anos, engravidei (ela é mãe de Isaac). Tempos depois, apareceu um curso na minha vida, na Oi Kabum! LAB, que me apontou a possibilidade de viver do audiovisual. Então, me empolguei novamente e, daí, fui fazer Cinema e Audiovisual na UNA. Me formei, montamos a Renca Produções e Interações Culturais (junto a Natalie Matos e Denise dos Santos) e estou aí, na estrada”.

A Renca é descrita por ela como um empreendimento de mulheres negras, de Belo Horizonte, que despontou para tratar o audiovisual a partir “da nossa perspectiva, da nossa subjetividade”. “Ou seja, pensar esse registro para além da frente das câmeras, mas também atrás delas. E do pensamento audiovisual como um todo”. Porém, Gabriela explica que, atualmente, a Renca está em modo pausa. “A gente deu uma parada para organizar a casa e entender o que a gente quer coletivamente. Então, é um pouquinho um stand-by, mas estamos aí”.

Arte e política

Todavia, Gabriela ressalva que, nesta caminhada pelo território do audiovisual, uma constante é estar sempre se questionando sobre o que quer mostrar, sobre o que quer falar. “Por exemplo, pra mim, arte e política nunca estão dissociadas. Assim, não consigo criar coisas que não tenham, de alguma forma, o tom político. No sentido de pertencimento mesmo, que tem a ver principalmente com a minha vivência. Ou seja, com ser favelada, estar na periferia.. Que tem a ver com negritude, com feminismo, com gravidez na adolescência”.

Então, isso tudo perpassava as pesquisas de Gabriela. “E perpassa até hoje. A minha vontade com o cinema é sempre registrar aquilo que vejo, da forma que vejo, mas com esse tom político de memória, de pertencimento, de identidade, enfim”. Perguntada sobre a maior influência na formação, ela diz: “Não adianta, sempre foi e sempre vai ser a minha comunidade, pois é de onde eu parto. E é de onde vem a minha subjetividade. A gente é feito de subjetividades na vida e é meu primeiro lugar de convivência, enfim. Muito da minha vontade tem a ver com este espaço especificamente. Não só, mas muito tem a ver”.

Papagaio Cultural

O Papagaio Cultural, outro projeto que tem o dedo de Gabriela no meio, surgiu, conta ela, com a união de dez artistas da comunidade. “A gente estava muito incomodado com o fato de a cena, ali, estar muito parada. Na verdade, a gente não conversava entre a gente, não trocava. Então, decidimos fazer um festival, que teve dois dias de duração”. Aconteceu ano passado, em abril. “Digo que foi o melhor final de semana da minha vida. A gente colocou 60 atrações, em quatro palcos diferentes, em dois dias de evento. Todas (atrações) da comunidade”.

Catarse

Assim, foi possível inclusive gerar renda. “Além de conseguirmos remunerar as atrações, o evento contou com barraquinhas de empreendedores da própria comunidade”. Tal qual, uma memória afetiva foi criada. “Ao fim, foi uma catarse coletiva, literalmente. Todo mundo estava muito feliz. Foi muito, muito doido. E a gente está com fé que esse ano vamos conseguir realizar. Porém, infelizmente, a gente depende de fomento público, então, estamos aguardando o retorno de alguns editais. Mas que esperamos fazer, com toda certeza, esse ano e no próximo e no próximo e no próximo. Agora que a gente começou, não vamos parar nunca mais”.

Pensando no coletivo

E sempre nessa ideia de fomentar uma memória. “Trazer esse espaço de lazer e cultura para os moradores, de acesso mesmo. Porque, muitas vezes, a gente não tem esse acesso. Por exemplo, tinha dez anos que o Morro não tinha um evento grande, com um palco mesmo, o último foi em 2013. E aí, a gente possibilitou isso. E muito mais doido ainda: só com artista da comunidade. Então, o Papagaio Cultural também promove esse reconhecimento dos artistas locais. Além, claro, de movimentar essa economia. Enfim, todo mundo sai ganhando. Esse projeto é muito lindo, porque fala sobre muita coisa que a gente acredita enquanto coletivo”, pondera Gabriela Matos.

Papel da memória

Indagada sobre o valor da memória no trabalho que desenvolve, Gabriela resume: “Fundamental”. E pormenoriza: “Desde o primeiro curta que eu dirigi, que é ‘Favela em Diáspora’. Ele fala das emoções dessa comunidade, do Morro do Papagaio, através do Vila Viva, que tenta resgatar a memória e, de alguma forma, eternizá-la, nesses espaços nos quais a gente acabou sendo removida, à força, pelo poder público. Então, pra mim, tudo perpassa a memória. Tudo tem a ver com o afetivo, de certa forma. E digo memória tanto no sentido de resgatar quanto de manter também, para que, no futuro, termos esses registros.

Ferramenta

Gabriela lembra que, para ela, o cinema é, antes de tudo, uma ferramenta. “Assim, não é o objetivo final, mas uma ferramenta para que a memória não seja apagada. Desse modo, participar desse filme tem a ver inclusive com a memória da comunidade. ‘Amanhã’ fala sobre a cidade, sobre o que a gente estava vivendo na época das primeiras filmagens, tanto quanto da nova gravação. Mas, de alguma forma, ele também fala sobre esse espaço, como ele evoluiu”. Ou seja, as mudanças que aconteceram nesses 20 anos. “Então, é um marcador importante de memória. E mais um motivo que me fez querer participar dessa produção, porque, para mim, é muito importante falar, pesquisar e viver a memória. Memória é tudo”.

Outros projetos

Atualmente, além do Papagaio Cultural, Gabriela diz querer lançar outras iniciativas que viabilizem o acesso à cultura e o desenvolvimento profissional dos artistas. “Além disso, estou com uma ideia de roteiro para um curta, e quero focar nisso. E começar uma ideia de longa também. Neste sentido, é um ano de fechar as ideias e começar roteiros, especificamente”, conclui ela.

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