• New Page 1

    RSSFacebookYouTubeInstagramTwitterYouTubeYouTubeYouTubeYouTubeYouTubeYouTubeYouTube  

A importância do sistema de justiça para uma educação antirracista

Em janeiro de 2023, a Lei 10.639/03, que obriga o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira no ensino básico, completou 20 anos de vigência. Essa lei é uma conquista do povo brasileiro e reforça a centralidade da escola no sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes. A pesquisa Lei 10.639/03: a atuação das Secretarias Municipais de Educação no ensino de história e cultura africana e afro-brasileira”, realizada por Geledés Instituto da Mulher Negra e Instituto Alana, apresentou dados que permitem afirmar que 71% das Secretarias Municipais de Educação não implementam o principal instrumento de combate ao racismo vigente em nosso ordenamento jurídico.

O direito à educação previsto no artigo 205 da Constituição Federal de 1988 tem como objetivo o pleno desenvolvimento das pessoas, e, reforçado pelo artigo 227, as crianças e adolescentes são prioridade absoluta na elaboração de políticas públicas educacionais. O sistema de garantia de direitos deve garantir, portanto, que todas as crianças e adolescentes tenham acesso ao ensino da história do Brasil sem discriminação e sob uma perspectiva que inclua a história e cultura negra brasileira, o negro na formação da sociedade nacional e sua contribuição nas áreas social, econômica e política.

Nesse sentido, o cumprimento da Lei 10.639/03 é imprescindível para a proteção do direito à educação integral e democrática de crianças negras e não negras. Porém, o diagnóstico produzido por Alana e Geledés e respondido por 21% dos municípios brasileiros revela que apenas 29% das secretarias mobilizam instrumentos da gestão pública de forma planejada e perene para o cumprimento da lei.

O levantamento verificou aspectos da implementação de instrumentos de gestão pública que organizam a política educacional nos municípios, envolvendo a presença de equipes técnicas responsáveis, orçamento dedicado, regulamentação municipal sobre o tema, práticas escolares de forma regular e parcerias com governos, universidades, movimentos sociais e terceiro setor.

Cabe dizer que, embora nos últimos anos as políticas educacionais antirracistas não tenham sido coordenadas pelos tomadores de decisão do governo federal e/ou respeitadas por gestores municipais, a agenda permanece ativa por meio de ações constantes e consistentes do movimento negro, de profissionais da educação comprometidos, de segmentos aliados da sociedade civil e canais de mídia.

As Secretarias Municipais de Educação que responderam a pesquisa ressaltam a importância da atuação colaborativa entre governos, universidades e movimento social. Metade dos municípios que não realizam nenhum tipo de ação para o cumprimento da lei afirmam que não tiveram qualquer tipo de apoio, enquanto que, entre os municípios com ações consistentes e perenes, este número cai para um terço.

Embora a colaboração seja prevista e estimulada no pacto federativo, sobretudo nas políticas educacionais, a lei federal deve ser cumprida pelo agente público, independente de parcerias estabelecidas. Isto é, considerando que  a Lei 10.639/03 altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, estabelecendo em seu artigo 26-A a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira no currículo oficial da educação brasileira, é estarrecedor que o cumprimento deste dispositivo quase sempre apareça atrelado às parcerias externas e ocasionais, como parece ser percepção de agentes públicos que responderam a pesquisa.

É importante reforçar que o compromisso com a luta antirracista deve ser assumido por diferentes atores e órgãos públicos, para que aconteça de forma estruturada e intencional, não apenas paliativa, punitiva ou reativa, como acontece quando há ocorrências e denúncias de racismo nas escolas.

Como, então, o sistema de justiça pode contribuir para o fortalecimento desta lei? Uma das possibilidades é que os órgãos do sistema de justiça, que também compõem o eixo de defesa do sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes, como o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública, atuem para garantir o cumprimento da lei.

Nesse sentido, há três casos emblemáticos: em 2011, em função da representação realizada pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), foi firmado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre o Ministério Público Federal e 11 municípios do interior de São Paulo, a fim de garantir a introdução do ensino de história e cultura afro-brasileira no sistema curricular das escolas municipais;  em 2015, o Conselho Nacional do Ministério Público e a Ação Educativa lançaram um guia de contribuições para a implementação da Lei 10.639/03; e, em 2018, a Justiça do Rio de Janeiro foi favorável à realização de perícias sobre a aplicação da lei na Baixada Fluminense.

O que vemos é que cada vez mais os Ministérios Públicos, por exemplo, provocados pela sociedade civil, têm atuado para a formação de promotores nesta agenda e atuação intersetorial com governos executivos locais.

No entanto, a atuação conjunta e de forma intersetorial ainda é muito precária, isso porque, em geral, municípios não possuem órgãos ou espaços para a discussão de relações étnico-raciais na educação. Segundo a pesquisa feita por Geledés e Alana, apenas 13% deles possuem um conselho, comitê ou fórum intersetorial específico para tratar da temática.

Convocar o sistema de justiça à garantia de políticas antirracistas nas escolas fortalece o sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes. A pesquisa revela ainda que, para 20% dos municípios respondentes, a ausência de fiscalização que garanta a implementação efetiva da lei é um desafio para a gestão fazer cumprir o obrigatório.

Por fim, os resultados obtidos com a pesquisa vão além do retrato da implementação da Lei 10.639/03 e convida atores estratégicos para atuarem pela garantia do direito de crianças e adolescentes. Além disso, contribui com o debate qualificado sobre a sociedade que queremos, merecemos e que só pode ser construída com a implementação adequada de políticas públicas antirracistas, considerando o impacto que a aplicação correta da lei tem na estrutura institucional da política educacional, na formação dos profissionais da educação e no ensino e aprendizagem de crianças e adolescentes para que conheçam e valorizem a história, cultura e contribuições dos povos africanos e afro-brasileiros na formação do país. E, principalmente, destacando como esse processo pode ser transformador para toda a sociedade.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *