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‘Nenhum país no mundo diferencia alíquotas por setores’, afirma ‘padroeira’ do IVA

Com experiência na implementação e na reforma do Imposto sobre Valor Agregado (IVA) ao redor do mundo, a portuguesa Rita de La Feria afirma que, diferentemente do que defende uma parte das empresas no Brasil, nenhum país diferencia as alíquotas do imposto por setores.

Em entrevista ao JOTA, a professora de direito tributário da Universidade de Leeds, na Inglaterra, que é chamada por tributaristas brasileiros de “padroeira do IVA”, explica que o que há em algumas economias é uma multiplicidade de alíquotas do IVA sobre bens e serviços. Ainda assim, isso ocorre em países que implementaram “IVAs antigos”, como os europeus, que fizeram reformas nos anos 1980, e não em alterações ocorridas recentemente. O ideal, avalia a especialista, é que a alíquota seja única e que o Brasil institua um sistema que permita a devolução do imposto a pessoas de baixa renda, a exemplo da proposta do cashback em discussão no país.

Sobre a possibilidade de se estabelecer um IVA dual — com a instituição de um IVA federal, que reuniria IPI, PIS e Cofins, e um estadual/municipal, que reuniria ICMS e ISS —, Rita de La Feria afirma que há poucas experiências no mundo. A mais notória é a do Canadá. Mas há muitos países com estrutura federativa, a exemplo da Alemanha, que implementam um IVA único.

Para a professora, o IVA único é tecnicamente superior porque cria menos problemas, entre eles a possibilidade de “fricções” entre os sistemas federal e estadual/municipal. Se o Brasil implementar, ao mesmo tempo, um IVA dual e ainda com alíquotas múltiplas, esse cenário será ainda pior, diz. De todo modo, na visão da especialista, caso o Brasil aprove um IVA dual, esta será uma vitória, e o imposto ainda será “largamente superior” na comparação com o modelo atual do país. A seu ver, o Brasil está isolado no contexto mundial, para o mal, na forma de tributar o consumo.

“Do ponto de vista técnico, quanto mais unificada a tributação, melhor. Claro que, comparado com o que o Brasil tem, um IVA dual seria um grande avanço. Ou seja, é uma questão de vantagens comparativas. Tecnicamente, o IVA único seria melhor, mas um IVA dual seria largamente superior ao que vocês têm. Já seria uma grande vitória”, afirma.

Rita de La Faria participou da implementação do IVA em países como Angola, São Tomé e Príncipe e Timor Leste e auxiliou na redação de várias legislações tributárias ao redor do mundo, incluindo a de Portugal. A professora esteve no Brasil em reuniões com representantes do governo, do Congresso Nacional e do setor produtivo, em uma agenda organizada pelo Centro de Cidadania Fiscal (CCiF).

Confira trechos da entrevista com Rita de La Feria, que foi enviada na íntegra para os assinantes do JOTA PRO Tributos.

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O Brasil tem uma proposta que prevê a criação de um IVA. A senhora avalia que o Brasil precisa mudar para o IVA. E por quê?

A decisão sobre o que fazer é vossa [do Brasil]. Em termos de práticas internacionais, efetivamente o Brasil está defasado do resto do mundo. Vossa tributação sobre o consumo é diferente, para pior, que a de qualquer outro país. Na maioria dos países, em quase todos, há um imposto geral sobre o consumo para fazer o trabalho para o qual vocês aqui têm cinco para fazer. Cerca de 170 países, a grande maioria no mundo, têm um IVA. O único país de relevo que não tem um IVA são os Estados Unidos da América, mas [os EUA] também têm um imposto geral sobre consumo. Portanto, o Brasil está isolado no contexto mundial na forma de tributar o consumo. E, na verdade, para o mal.

Há uma expectativa sobre o texto que será apresentado pelo relator [na Câmara, deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB)]. Há a possibilidade de ser instituído um IVA Dual. Qual modelo seria melhor para o Brasil, um IVA Dual ou IVA único?

Há uma questão de vantagens comparativas. Se me perguntar do ponto de vista técnico, o IVA único é superior, porque cria menos problemas. Na verdade, quando há mais de uma legislação, começa a haver fricções, problemas na fronteira entre uma e outra [legislação]. Há sempre problemas de interpretação que nascem de haver dois sistemas diferentes. No IVA único, isso não acontece porque há uma só legislação. Do ponto de vista técnico, quanto mais unificada a tributação, melhor. Claro que, comparado com o que o Brasil tem, um IVA dual seria um grande avanço. Ou seja, é uma questão de vantagens comparativas. Tecnicamente, o IVA único seria melhor, mas um IVA dual seria largamente superior ao que vocês têm. Já seria uma grande vitória.

Há outros países com IVA dual?

Não há muitas experiências com IVA dual. A que é mais notória no mundo é o caso do Canadá, que tem um IVA dual, mas há muitos países com estrutura federativa, que possuem um IVA único. Então, não decorre necessariamente do fato de o Brasil ter uma estrutura federativa que haverá um IVA dual. Há muitos países no mundo com estrutura federativa — apesar de o Brasil ter três níveis, enquanto a grande maioria dos países tem dois —, mas que têm um IVA único. Mas, se o resultado da negociação política for um IVA dual para o Brasil, ainda seria largamente superior, tecnicamente, ao que o Brasil tem.

Há algum exemplo de país com sistema federativo e com IVA único?

Claro, inclusive dentro da Europa, o caso da Alemanha, por exemplo. A Alemanha tem uma estrutura federativa e sempre teve um IVA único. Nunca se colocou sequer a questão de ter mais de um IVA. Portanto, há vários países no mundo com estrutura federativa, e a maioria adota IVA único. Quando o IVA dual foi introduzido no Canadá, foi um pouco uma inovação, que resultou bem, funciona bem, mas foi uma inovação técnica. O Canadá fez o IVA dual porque a estrutura federativa era muito forte e, em termos políticos, decidiram dar essa autonomia aos estados. Eles não têm tido problemas, mas efetivamente há sempre uma fricção entre uma legislação e outra.

Discute-se o estabelecimento de alíquotas diferenciadas por setores ou por bens e serviços. Nas reformas tributárias que a senhora ajudou a implementar mundo afora, há essa diferenciação nas alíquotas?

Posso dizer que não há nenhum país no mundo que diferencie as alíquotas por setores. Nenhum. Não existe. Todos os países do mundo que têm alíquotas múltiplas — e há muitos — fazem por tipo de bens ou tipo de serviços. Ou seja, o que a lei contém é uma listagem de bens e serviços sujeitos a uma alíquota reduzida. O que isso quer dizer na prática é que, mesmo em setores que façam na sua maioria, transações, seja de bens, seja de serviços, sujeitos a alíquotas reduzidas, nunca são reduzidas todas as alíquotas.

Mas então seria coincidência ter várias alíquotas reduzidas em um mesmo setor, uma vez que a diferenciação é por bens e serviços?

[A diferenciação] é sobre bens e serviços. Há setores que são primordialmente sujeitos a alíquotas reduzidas, como saúde, caso em que o que há [em países europeus], na verdade, nem é alíquota reduzida, é isenção, mas não é para a saúde toda. É para uma lista de serviços prestados pelo setor de saúde. O que se quer dizer na prática é que todos os hospitais europeus que têm serviços que são isentos também prestam serviços que não são isentos.

Quais países têm alíquotas reduzidas?

Há países no mundo que possuem alíquotas reduzidas, mas são com os IVAs antigos [os primeiros a serem implementados]. Os países desenvolvidos, os mais ricos, vulgos países europeus, têm alíquotas reduzidas. Essa é uma correlação que não tem causalidade, ou seja, como os ingleses dizem, “correlation is not causation”. É verdade que os europeus são países ricos, é verdade que têm alíquotas reduzidas, mas essa não é a razão pela qual eles têm alíquotas reduzidas. Ou seja, a razão é que são IVAs antigos. Porque há países ricos, como Canadá e da Austrália, que são parte do G7, portanto estamos a falar dos países mais ricos do mundo, que têm só uma alíquota.

Por que os europeus têm esse sistema?

Em 1967, quando introduzimos o IVA na Europa, ele era uma inovação técnica, que só havia sido introduzido na França. Não havia conhecimento profundo para o seu funcionamento. E a essa altura tínhamos que qualquer imposto geral sobre o consumo, não só o IVA, era por sua natureza regressivo, com mais oneração sobre os menos favorecidos. Por isso, introduzimos as alíquotas reduzidas para bens e serviços essenciais. Passados vários anos, passamos a perceber que não estava muito bem. Em 1980, a Nova Zelândia introduziu um IVA, olhou para dentro dos países europeus, mas decidiu inovar e adotar uma alíquota única. E não adotou nenhuma isenção. O que ela faz para reduzir essa regressividade? Faz aquilo que vocês chamam aqui de cashback, uma devolução para os mais carenciados. Quem está no topo da distribuição da renda paga o imposto. Quem não está, paga inicialmente, mas depois recebe o imposto de volta. A partir de 1980, quase todos os países introduziram uma alíquota única.

Quais países, por exemplo, implementaram IVA com alíquota única a partir dos anos 1980?

Por exemplo, Austrália, Singapura, Canadá e África do Sul. Estamos a falar de países desenvolvidos e também menos desenvolvidos. Quase todos os países da África implementaram o IVA depois de 1980, então quase nenhum possui alíquotas múltiplas. A Europa já poderia ter mudado para uma alíquota única. Em 1987, foi [realizada] a primeira proposta na Comissão Europeia para tentar diminuir o número de alíquotas reduzidas. O problema não é técnico. O problema é político. É que uma vez introduzidas alíquotas reduzidas, é muito difícil alterar, porque os interesses estão estabelecidos. Estamos desde 1987 em uma luta para tentar corrigir um erro inicial que cometemos em 1967 [com a implementação de alíquotas diversas], mas tem sido um problema. Sempre que a Comissão Europeia avança nesse sentido, há uma reação dos lobbies, e [a Comissão] não consegue passar a mudança.

E como fica a questão de diferenciar as alíquotas em função da essencialidade dos bens e serviços, uma vez que isso, no Brasil, obedece ao princípio da seletividade, previsto na Constituição?

Para mim, tecnicamente, esse princípio está totalmente ultrapassado. Não cabe a mim fazer críticas à Constituição brasileira, não é? Mas, tecnicamente, esse princípio está ultrapassado. Existia a ideia de que isso ajudaria os mais carenciados. Hoje, a gente sabe que isso não é verdade. Esse princípio que está por trás dessa essencialidade, que é a proteção dos mais carenciados, é cumprido melhor de forma direta, de auxílio direto, do que através de um imposto geral sobre o consumo, que no fundo vai proteger quem consome mais. Por exemplo, no caso da energia elétrica, todos nós consumimos. Pensamos, se todos consumimos, se isenta, vai beneficiar os mais pobres, que destinam grande parte da renda para energia elétrica. A questão é que olhamos para os dados do consumo da energia elétrica e sabemos que isso não é verdade. À medida que sua renda vai aumentando, o consumo da energia elétrica vai aumentando também. Então, se isenta, quem está a se beneficiar mais de tudo é quem está no topo da distribuição da renda. Assim, a ideia é que a essencialidade protege os mais pobres, mas na verdade aumenta a regressividade [do sistema tributário] muitas vezes.

E qual seria esse sistema de devolução? Seria o cashback?

Sim, o que vocês chamam de cashback é um sistema de devolução. Esse sistema foi introduzido inicialmente na Nova Zelândia, quando eles implementaram a alíquota única. De lá para cá, outros países fizeram, incluindo o Canadá. Essa devolução dentro desses países com IVAs mais antigos tem sido feita tradicionalmente ao fim do mês. A pessoa faz as compras e recebe a devolução do IVA que pagou ao fim do mês. Hoje, isso já não é mais necessário. Ou seja, a evolução tecnológica permite fazer uma devolução quase instantânea. Esse cashback favoreceria quem está a comprar como se fosse uma isenção, [a pessoa] não paga imposto. A pessoa vai ao supermercado, por exemplo, quando chega ao caixa, dá o seu CPF, o sistema automaticamente identifica essa pessoa como de renda baixa, e o valor do IVA é devolvido imediatamente de forma digital ou através de conta bancária, de cartão digital ou aplicativo no celular, por exemplo.

Então, a senhora é a favor dessa proposta de cashback em discussão no Brasil?

Sou.

Seria possível instituir alíquotas distintas tanto no IVA único quanto no IVA dual?

Tecnicamente é possível. Uma coisa não tem implicações na outra. Pode ter um IVA dual com alíquota única para cada um desses dois IVAs. E pode ter um IVA dual com alíquotas múltiplas para cada um desses dois IVAs. Os problemas da alíquota múltipla verificam-se independentemente se há um IVA único ou um IVA dual. Se for um IVA dual e houver alíquotas múltiplas dentro dele, isso ainda vai ser pior, porque não só haverá o problema da fricção entre as duas legislações, mas também o das alíquotas múltiplas.

Há algum país em que, além de o IVA ser dual, as alíquotas são diferenciadas?

O Canadá tem um IVA dual. São duas alíquotas, mas uma alíquota para um IVA e a outra para o outro IVA. Dentro dos IVAs, não tem alíquotas diferentes. Tecnicamente é possível [haver alíquotas distintas dentro de cada IVA no sistema dual], mas não conheço exemplos mundiais. Na Índia, discute-se se a classificação é de IVA dual ou não. Lá há alíquotas múltiplas. A minha percepção era de que é um IVA único, mas já ouvi classificações de que é dual. O IVA da Índia foi uma inovação, mas efetivamente as alíquotas múltiplas estão a criar problemas. Portanto, no fundo, é um exemplo positivo, mas também negativo para o Brasil, porque é um país muito grande, com sistema federativo, em que, por um lado, prova que se é possível aprovar um IVA, por outro lado lida com os custos de não ter conseguido aplicar uma alíquota única.

Então, fora a Índia, sobre a qual há divergência a respeito de o IVA ser dual ou não, não há no mundo outros exemplos de países que aplicam simultaneamente um IVA dual e alíquotas diferenciadas?

Não. Mas há muito poucos países com IVAs duais. Então, não há muitos exemplos no mundo, porque [o IVA dual] é uma inovação técnica introduzida mais recentemente e que nem era cogitada por países com sistema federativo que introduziram o IVA há mais tempo. Só depois dos anos 1990, após a implementação do IVA no Canadá, é que aparece essa figura do IVA dual.

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