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O diálogo de Dias Perfeitos, de Wim Wenders, e Dublinenses, de James Joyce

Edmar Monteiro Filho

O cineasta alemão Wim Wenders é dono de uma vasta e premiadíssima filmografia. Títulos de ficção, como “Paris, Texas”, “Alice nas Cidades”, “O Amigo Americano”, “Asas do Desejo”, “Tão Longe, Tão Perto” e “A Angústia do Goleiro Diante do Pênalti” — adaptação do livro homônimo de Peter Handke —, fazem parte de qualquer antologia de grandes filmes produzidos na segunda metade do século XX. Suas incursões pelo documentário também são dignas de menção, bastando citar os magníficos “Buena Vista Social Clube” e “O Sal da Terra”, este último sobre a obra do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado.

Cena do filme Dias Perfeitos, de Wim Wenders

Sempre aberto às inovações técnicas e às experimentações dentro da linguagem cinematográfica, Wenders traz uma assinatura inconfundível para seus filmes, nos quais, “em vez de uma ação convencionalmente construída, predomina uma riqueza de atmosferas e observações”, conforme bem caracterizou o jornalista Gerhard Midding. E essa assinatura mostra-se com todas as suas nuances em “Dias Perfeitos”, sua mais recente realização, que concorreu ao Oscar de filme internacional — derrotado injustamente, a meu ver, pelo britânico “Zona de Interesse”.

Wim Wenders: um dos mais notáveis diretores de cinema da Alemanha | Foto: Reprodução

Primor de sutileza, concisão e simplicidade, o filme retrata o dia a dia de Hirayama, funcionário encarregado da limpeza de banheiros públicos em Tóquio, que segue uma rígida rotina de trabalho, mas que zela com carinho por seus momentos de lazer, dedicados à leitura, à fotografia e à música. A narrativa, colada à repetição minuciosa das atividades de Hirayama e às sutis revelações sobre seu passado, vai paulatinamente revelando tesouros de singela beleza. E será justamente a música uma das chaves para a compreensão profunda do filme, em especial a canção “Feeling Good”, na preciosa interpretação de Nina Simone.

As epifanias de James Joyce

Em literatura, simplicidade e sutileza são qualidades dificilmente associadas ao escritor irlandês James Joyce. Autor dos revolucionários “Ulisses” e “Finnegans Wake”, romances norteados pela experimentação formal mais extrema, com a criação de termos e expressões multilíngues, uso do fluxo de consciência, mistura de gêneros e emprego de livre associação de imagens ao modo dos sonhos, Joyce teve seus livros rejeitados pelas editoras como material sem qualidade e queimados publicamente como pornografia até receber reconhecimento como um dos maiores escritores do século XX.

Mas, antes de seus textos mais controvertidos e formalmente ousados, Joyce publicou, em 1914, a coletânea de contos “Dublinenses”. Trata-se de um conjunto coeso de narrativas, estruturadas de forma mais convencional, em que o autor demonstra um extraordinário talento para criação de personagens e situações ricas em sentidos ocultos.

A comparação entre “Dublinenses” e os consagrados romances de Joyce mostra dois escritores aparentemente distintos. Aqui, pouco se vê a ironia e a invenção, típicas do texto do autor. A linguagem é poética, melancólica, o olhar sem complacência para a Dublin da passagem do século XIX para o XX: sua vida estagnada, a mentalidade estreita de seus habitantes. Como o escritor russo Isaac Bábel, Joyce usa o recurso da “epifania”, revelação que surge subitamente em dado momento do texto, expandindo sua compreensão. Assim, sobre o tom que remete às tardes chuvosas de Dublin, irrompe repentina luz, que convida o leitor a redescobrir a história, a reexaminar suas ideias.

James Joyce: o William Shakespeare da Irlanda | Foto: Reprodução

Vale destacar o conto “Os Mortos”, sem dúvida o melhor momento do livro. O relato de um jantar festivo na época do Natal, na casa de duas velhas professoras de música, que recebem um grupo de alunos, parentes e convidados, é oportunidade para que o autor apresente breves discussões sobre arte, o nacionalismo irlandês e as relações pessoais.

Ganham certo destaque na trama o casal formado pelo sobrinho Gabriel, encarregado do discurso da noite, e sua esposa Gretta, casal que aparenta uma relação tanto amistosa quanto envelhecida. A festa vai sendo descrita em seus pormenores: a execução das peças musicais, pequenos conflitos sem importância, os discursos, as despedidas. E quando tudo parece encaminhar-se nesse mesmo tom elegante e contido, a revelação sobre um momento no passado de Gretta brilha no texto, transformando suas últimas páginas num acontecimento maior da literatura. Limites entre tradição e invenção.

Cena de Os Vivos e os Mortos, de John Huston

“Os Mortos”, em especial, evidencia o talento do escritor em transformar um relato simples num momento de rara poesia.

Tendo em vista a sequência da produção de James Joyce, “Dublinenses” presta-se à perfeição para as discussões em torno da reelaboração das formas, não é coincidência que o cineasta John Huston tenha levado o conto às telas, sob o título de “Os Vivos e os Mortos”, e que este que foi seu testamento artístico dialogue francamente com a elegância de “Dias Perfeitos”.

Edmar Monteiro Filho é crítico literário. E-mail: [email protected]

Feeling Good na voz de Nina Simone

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