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Cinema: O tesouro do tempo

Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do IMS

Segue em cartaz nas melhores salas do ramo o italiano La chimera, de Alice Rohrwacher, um dos filmes mais originais e surpreendentes da temporada, ganhador, entre outras coisas, do prêmio do público na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Dito resumidamente, é a crônica de um grupo meio picaresco de saqueadores de túmulos etruscos, em busca de objetos a ser comercializados no mercado de arte antiga. Eles se servem do misterioso dom de um lacônico inglês, Arthur (Josh O’Connor), para descobrir onde estão enterradas as preciosidades. Tudo acabará nas mãos de um não menos misterioso açambarcador, a quem chamam de Spartaco – e não deixa de ser irônico dar o nome do líder de uma rebelião de escravos a um representante do capitalismo mais voraz.

Camadas geológicas

A narrativa de La chimera se desenvolve em várias camadas, como se fossem estratos geológicos que eventualmente se tocam. Além da pressão dos companheiros para prospectar o subsolo, Arthur se vê às voltas com a sombra de um amor passado, a namorada morta Beniamina, que lhe aparece em sonhos e lembranças (em imagens rodadas em 16mm e mostradas num quadro mais estreito que o do resto do filme).

Para complicar, a mãe da moça, Flora (Isabella Rossellini), uma professora de canto e aristocrata decaída presa a uma cadeira de rodas, acredita que a filha está viva – e conta com Arthur para encontrá-la.

Nesse contexto em que Arthur parece sempre estar pouco à vontade, fora do lugar, é com outra figura estrangeira que ele vai estabelecer uma proximidade singular: a brasileira Itália (Carol Duarte), aluna de canto e empregada doméstica da autoritária Flora.

Mistura de gêneros

Com uma desenvoltura notável, Alice Rohrwacher (diretora também do belo Lazzaro felice) desdobra essas linhas dramáticas trafegando da comédia à aventura, ao suspense policial, ao comentário político e à poesia histórico-mitológica. O sagrado e o profano se interpenetram, as eras históricas se embaralham, os vivos convivem com os mortos. Os perrengues dos pequenos malandros saqueadores de hoje ganham uma dimensão metafísica ao tocar os resquícios de uma civilização extinta há dois milênios.

Tudo sem pompa, peso ou solenidade. A diretora não hesita em romper com o realismo e a verossimilhança por diversas vias: acelerando comicamente a velocidade da imagem, colocando uma personagem para falar diretamente à câmera, caricaturando uma disputa comercial como um enfrentamento entre animais ferozes, etc. Nada disso é novidade em si, mas sua aparente incongruência numa narrativa realista confere surpresa e frescor ao conjunto.

Nesse exercício de liberdade criativa, é impossível não notar a influência de Fellini. Uma festa popular de província em que os homens saem à rua vestidos de mulheres parece tirada de Amarcord, a cômica indolência dos saqueadores lembra Os boas-vidas, os afrescos antigos que se apagam com a entrada do ar no subsolo replica uma cena análoga de Roma.

Mas o olhar matreiramente feminino da cineasta se revela nas falas antimachistas da francesa Melodie (Lou Roy-Lecollinet), na comunidade de mulheres que ocupa uma estação ferroviária abandonada e, sobretudo, na figura graciosamente desajeitada da brasileira Itália, a personagem mais vital e encantadora de todo o filme, encarnada com brilho por Carol Duarte. A política de Alice Rohrwacher não se faz com cara feia, mas com irreverência, surpresa e humor.

O post Cinema: O tesouro do tempo apareceu primeiro em Diário Carioca.

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