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    AGÊNCIA JF | Social - Repositório

Sobrevivente do holocausto relembra atrocidades, fome e fuga do campo de concentração com ajuda do irmãozinho


Na semana em que o mundo celebra os 79 da derrota da Alemanha Nazista, ucraniana conta história emblemática. Família escolheu em Campinas (SP) para ser novo lar após escapar. Aleksandra Marczenko conta horror da guerra e fuga do campo de extermínio nazista
Aleksandra Marczenko Carvalho, ucraniana de 87 anos, tem uma dessas histórias que poderiam estar em um livro. Por dois anos, enquanto era apenas uma criança, viveu no campo de concentração de Cuxhaven, na Alemanha, durante a Segunda Guerra Mundial.
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Nascida em um vilarejo de Stetzkivtzi, que fazia parte da antiga União Soviética (URSS), Aleksandra e a família foram mantidos presos pelos alemães por serem estrangeiros. Seus pais foram submetidos a trabalho forçado e sem remuneração, período em que vivenciaram momentos de terror.
Após uma fuga arriscada, eles se refugiaram no Brasil e reconstruíram a vida na cidade de Campinas (SP), onde mora desde então. Na semana em que o mundo celebra os 79 anos da vitória sobre a Alemanha nazista, ela conversou com o g1 e reviveu memórias de sua vida emblemática.
Aleksandra Marczenko Carvalho
João Gabriel Alvarenga
Fome e miséria: a mãe comia cascas de batata
Com a guerra, a comida nunca era o suficiente. A tensão, que percorria por toda Europa, refletia na destruição e, principalmente, nas mortes. Aleksandra, sua mãe e seu irmão, por vezes, se alimentavam apenas de batata — e a matriarca, da casca do legume.
Durante os bombardeios, a ucraniana ficava escondida com a família em lugares seguros, como os bunkers, construções subterrâneas resistentes as bombas. Se não, corria para lugares arborizados, onde os explosivos não eram jogados.
No entanto, lembra que nem todos conseguiam estar em segurança a tempo. Quando podia sair, a jovem garotinha via como a vida pode ser frágil. “[Eu via os corpos] em árvores, nos lugares pendurados. Os braços, as pernas ou então o corpo da pessoa inteiro ou a metade.”
Família Marczenko sobreviveu a fome, a guerra e ao campo de concentração nazista.
João Gabriel Alvarenga
A insegurança era constante. Com a possibilidade de Alexey Marczenko, o patriarca da família, precisar servir seu país nas trincheiras, a família decidiu fugir e ir em busca de um novo lar.
Porém, ao atravessar a fronteira alemã, Alexey, Erdokija, a mãe, Aleksandra e Nicola, o irmão caçula, foram encontrados e reconhecidos como estrangeiros, que eram rechaçados pelo regime de Hitler.
Os quatro foram levados a cidade de Cuxhaven — lugar em que foram prisioneiros por dois anos. Com 8 anos, Aleksandra conheceria o horror da guerra sob outra perspectiva: os campos de concentração e extermínio nazistas.
Alexey viveu até os 76 anos em Campinas (SP).
João Gabriel Alvarenga
O horror do campo de concentração
Apesar de ter a avó judia, foi por conta da nacionalidade que os quatro acabaram sendo presos. Dentro do campo, Alexey e Erdokija foram submetidos a trabalho forçado e sem remuneração. Aleksandra viveu parte de sua infância em um lugar de extermínio, dor, prisão e fome.
Por dia, ela, sua mãe e seu irmão recebiam a ‘ração’ — como era chamado o alimento que eles comiam— em um único pote de alumínio. A cumbuca tinha três marcações de porções. Ao ser enchido, cada um comia até chegar na marcação. Então era hora de passar para o outro familiar.
Aleksandra Marczenko guarda recipiente que recebia comida no campo — cada risco representa uma porção
João Gabriel Alvarenga
Os prisioneiros tomavam banho no mesmo lugar em que as pessoas eram mortas pelo regime. O mesmo lugar em que prisioneiros eram assassinados. Pelo menos, seis milhões de judeus, além de outras minorias perseguidas, foram assassinados pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.
“Eles punham a gente dentro do campo, e tinha dia que eles abriam água. Tinham dias que punham um veneno e matava tudo. Quando eu entrava no campo, eles punham água, mas eles colocavam veneno também […] Eu sou sobrevivente, sim. Sou, porque, quantas vezes eu entrei naquela sala muito grande? Então eles punham todos ali. Pra nós eles colocavam água, mas pra muita gente era veneno”, explica Aleksandra.
As atrocidades do regime nazista contra os prisioneiros eram cometidas na frente de todos. A ucraniana lembra de cenas de horror como o assassinato de recém-nascidos a sangue frio.
“Eu cheguei ver. Pegavam na perninha, que nem um boneco e batia na parede. Matava. A mulher estava gravida, e teve a criança. Aquela criança não ficava viva, não. É assim que eles faziam no campo de concentração”, conta Aleksandra.
Fuga
Numa luta constante pela sobrevivência, Alexey e Erdokija arquitetaram um plano de fuga. Como o pai trabalhava como motorista dos alemães e a mãe saía todos os dias para pegar leite, escapar do pesadelo não era uma missão impossível.
Mas, para conseguir sair do campo, existia uma condição: um membro da família sempre teria que ficar. Por isso, todos os integrantes da precisaram participar ativamente da estratégia para tudo se concretizar.
Alexey conseguiu combinar com um colega de sair da cidade em um trem de carga e precisava que sua família o encontrasse no estação, para que todos continuassem juntos. No plano, Erdokija e Aleksandra iam sair juntas para buscar pegar leite. Mas, e o irmãozinho Nicola?
Erdokija Marczenko
João Gabriel Alvarenga
Erdokija orientou o filho caçula a chorar desesperadamente quando fosse sair. O plano era inteligenteE enquanto a mãe fingiria incentivar o filho a cumprir a ordem e ficar no campo, o guarda se irritaria com o menino e o deixaria ir com a mãe. E deu certo.
“Chegou na saída, e no guarda, e meu irmão começou a chorar. E ela [a mãe] falava ‘fica, fica’, mas era combinado. E ele chorava. Até que o guarda ficou de saco cheio e falou para ela: ‘leva ele’. E era isso que a gente queria. E foi assim que a gente escapou do campo de concentração”, conta
O caldeirãozinho de leite que os três levavam foi enchido com roupas e itens pessoais. Para a dor da pequena Aleksandra, agora com dez anos, a boneca de pano que ela brincava no campo teve que ficar para trás.
Alexey Marczenko, Aleksandra Marczenko, Nicola Marczenko e Erdokija Marczenko
João Gabriel Alvarenga
Ainda na Alemanha, Nicola ficou doente. O caçula, e responsável pela saída estratégica da família, morreu após o rompimento de uma apendicite, antes de ter a oportunidade de recomeçar sua história em outro lugar. Segundo Aleksandra, se ele tivesse tido acesso a atendimento adequado em Cuxhaven, teria sobrevivido
Com o fim da guerra, voltar para o país de origem não era uma opção. Um padre contou ao pai que o governo da Ucrânia estava executando todos os ucranianos que haviam fugido assim que retornavam ao país. Por isso, os (agora) três precisam achar um novo lar.
O recomeço
Ucranianos se passaram por poloneses para conseguirem se refugiar no Brasil
João Gabriel Alvarenga
Eles seguiram até Hanôver, cidade alemã próxima à fronteira com a Dinamarca, e decidiram reerguer suas vidas no Brasil. Como todos os ucranianos refugiados eram ordenados a retornar ao seu país de origem, a família escondeu sua nacionalidade. Embarcaram como poloneses.
Só então, eles embarcaram para o seu novo (e definitivo) lar. Pais e filha não trouxeram nenhuma peça de roupa para o novo país, mas no caminho, Alexey conseguiu arrumar cinco livros — um deles, uma bíblia.
Recomeço e infância devolvida
Eles chegaram na Ilha das Flores, no Rio de Janeiro (RJ), mas foi Campinas (SP) que se tornou a casa da família. Logo, Alexey e Erdokija conseguiram serviço em uma fábrica de óleo das Empresas Matarazzo, que estava situada na cidade.
A reestruturação da vida dos refugiados não foi fácil. Eles moraram em um cômodo e de favor em uma chácara durante um bom tempo. Apesar disso, Aleksandra, agora segura e redescobrindo a paz, teve a infância devolvida. Aos poucos, precisou se adaptar a uma nova cultura e língua.
Aleksandra reconstituiu sua vida no Brasil.
João Gabriel Alvarenga
“Eu comecei a conversar com as crianças brasileiras, e a gente foi conversando. Pegava o nome no estralo, e falava o nome daquilo. Pegava um caderno, e falava ‘caderno’, e pegava uma outra coisa”, relembra.
Alexey e Erdokija viveram em Campinas até o fim da vida. O pai faleceu em 1984, com 76 anos, e a mãe em 2009, com 97 anos. Adulta, a ucraniana trabalhou como tecelã, casou-se e teve dois filhos, um menino e uma menina. “Hoje eu tô no céu”.
*Sob supervisão de João Alvarenga e Yasmin Castro.
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