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O conceito tributário de trust, segundo a MP 1171

A MP 1171, de 30 de abril de 2023, realizou a primeira regulamentação legal para fins de imposto de renda dos contratos de trust no exterior e previu que os bens e direitos objeto de trust no exterior serão considerados como permanecendo sob titularidade do instituidor após a instituição do trust e passarão à titularidade do beneficiário no momento da distribuição pelo trust para o beneficiário ou do falecimento do instituidor, o que ocorrer primeiro.  

Uma das discussões a respeito do contrato de trust refere-se à definição da pessoa a quem será atribuída a propriedade dos bens e direitos, durante a vigência do contrato, se ao instituidor (settlor), ao administrador (trustee) ou ao beneficiário (beneficiary).  

A Convenção de Haia, que não foi assinada pelo Brasil, considera que, notrust” os bens e direitos são colocados sob o controle de um administrador judicial em benefício de um beneficiário ou para uma finalidade específica. O termo “controle” pelo administrador, contudo, não resolve nossa questão, que é saber de quem será considerada a propriedade destes bens e direitos.

A Sefaz-SP considera que o beneficiário do trust irrevogável passa a ser o titular dos bens e direitos para fins de ITCMD já no momento em que é indicado pelo instituidor, na celebração do contrato (RCT 25343/2022).

De maneira diversa, compreendeu o STJ que os bens e direitos pertenceriam ao trustee, em contexto falimentar (RESP 1.438.142/SP). A Receita Federal, por sua vez, adotou uma terceira interpretação, segundo a qual as distribuições pelo trustee ao beneficiário constituem, em sua integralidade, rendimento tributável de fonte no exterior, sujeita ao IR pelo carnê-leão (SC COSIT 41/2020). 

A MP 1171 realizou duas opções acertadas. A primeira foi deixar de incidir o IR sobre todo o patrimônio quando fosse distribuído e passar a incidência apenas sobre os acréscimos ao patrimônio aportados pelo instituidor, o que é extremamente favorável ao contribuinte. A outra foi aplicar ao trust a regra de distribuição automática quando este detiver a titularidade de fundos ou fundações em paraísos fiscais ou com renda passiva relevante, criando uma norma antidiferimento, tal qual recomendam as boas práticas internacionais. Diversas são as formas de trust possíveis e, em função de cláusulas de confidencialidade – muitas vezes, opostas até em relação ao beneficário – e pactuação no exterior, torna-se muito difícil ao Estado conferir um tratamento tributário que corresponda especificamente aos termos escolhidos pelos contribuintes, em cada uma das multiformas adotadas.  

O tema cuida do uso de conceitos de direito privado; da criação de conceitos próprios; bem como do uso de normas antiabuso, todos três casos, no que se relaciona ao direito tributário. O conceito de trust trazido pela MP 1171 perpassa todos esses temas. Por isso, é preciso compreender o ponto de partida dos três temas acima mencionados no direito tributário. Em momento embrionário, o direito tributário utilizou-se de conceitos de direito privado, notadamente de direito civil e, em casos de abusos, também se socorria aos institutos civilistas. Ambas práticas, contudo, com o passar do tempo, mostraram-se ineficientes. 

Diversos países passaram a aditar ou completar os conceitos de direito privado, introduzindo nos conceitos elementos que levavam em consideração as finalidades do direito tributário, notadamente sua pretensão de apreender o fato econômico praticado pelo contribuinte. O direito alemão quando a lei tributária remetia aos conceitos civis, passou acrescer neles conceitos tributários que lhes derrogavam. Assim, o §39 I AO, do Código Alemão, apropria-se do conceito civilista “atribuição”, afirmando que “os bens são imputáveis ​​ao seu proprietário”.

Mas indo além o §39 II AO complementa o conceito civilista tornando-o mais próximo da realidade econômica. Conceitos tributários também foi criados, como renda, enriquecimento ou volume de vendas[1]. No campo das fraudes, seguiu-se processo semelhante quase no mundo todo, com a criação de normas tributárias antiabuso, porque institutos como a simulação falharam[2]. Os conceitos civilistas passaram a ter intepretação própria. Como dizia o alemão Klaus Tipke, “na interpretação de conceitos civilísticos previamente fixados deve-se estabelecer de início, que não há nenhuma prevalência teleológica do Direito Civil[3] 

Em síntese, portanto, nessa relação entre direito tributário e direito civil, os países: 1) aditaram ou complementaram os conceitos de direito civil; 2) passaram a interpretar os conceitos de direito civil segundo sua realidade econômica; 3) criaram conceitos específicos do direito tributário; e 4) criaram normas antiabuso tributárias, em exclusão ou acréscimo das normas antiabuso civilistas.  

Mas e o Brasil, o que fez desde a origem do direito tributário? O Brasil sempre fez quase tudo errado, andando na contramão do mundo. Por aqui, o Código Tributário Nacional (CTN) afirmou que o uso de conceitos de direito privado pelo legislador constitucional para definir competência tributária tornaria o direito tributário servil ao direito civil. E parte da doutrina sempre se esforçou em interpretar o direito tributário como se tratasse de direito civil. Em relação a fraudes, nada representa melhor o ocorrido do que uma passagem do livro Carnaval Tributário, de Becker. Como forma de convencer Rubens Gomes de Sousa a não incluir uma norma antiabuso no CTN, Becker escreveu-lhe um ofício, afirmando que a inclusão de uma norma antiabuso traria morte às empresas como o nazismo alemão trouxe morte aos judeus[4]. 

Felizmente, contudo, reformas constitucionais ampliaram conceitos civilistas (folha de salários e demais rendimentos, empresa ou entidade a ela equiparada) e o STF vem, sistematicamente, afirmando existirem conceitos constitucionais tributários, como forma de afastar, por exemplo, o conceito civilista de “serviço”, no sentido de obrigação de fazer ou não fazer, em casos como ISS sobre leasing financeiro (RE 547.245 e RE 592.905), operadoras de planos de saúde (RE 651.703) e licenciamento de software (RE 688223).  

O caso do trust, previsto pela MP 1171, passa por tudo que se abordou. Como exclusão, pode-se afirmar que o conceito de trust da novel medida provisória não trata de um conceito de direito privado utilizado pela CF para delimitar competência, o que atrairia uma discussão sobre a necessidade de o direito tributário obeceder algum conceito de trust trazido pelo direito civil. Também não se trata de um conceito civilista brasileiro, posto que inexiste. O que fez a MP foi conceituar trust para fins de imposto de renda. E a medida é muito salutar, por nos aproximar das experiências positivas mundo afora que criam conceitos próprios ao direito tributário, o qual deve apreender a realidade econômica. 

Em conclusão, o conceito de trust previsto pela MP 1171 não precisa obedecer nenhum conceito civilista. Ele deve, sim, respeitar a competência constitucional para tributar a renda. Neste tema, andou bem o legislador ao respeitar a disponibilidade da renda, quando afirmou que os rendimentos ou ganhos de capital gerados pelos bens e direitos objeto do trust somente seriam tributados “no momento da distribuição” (artigo 7º, II), salvo quando o trust detenha uma controlada no exterior, quando a disponibilidade da renda, em conformidade com o que decidiu o STF na ADI 2.588, ocorrerá à medida de sua apuração. A Medida Provisória trouxe sofisticação, segurança jurídica e justiça fiscal e merece nossos elogios neste aspecto conceitual.


[1] TIPKE, Klaus; LANG, Joachim. Ob. Cit., p. 62.

[2] COURINHA, Gustavo Lopes. A Cláusula Geral Anti-Abuso no Direito Tributário: Contributos para a sua Compreensão. Coimbra: Almedina, 2009, p. 13.

[3] TIPKE, Klaus; LANG, Joachim. Direito tributário. Vol.1, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008, p. 62.

[4] BECKER, Alfredo Augusto. Carnaval tributário. 2.ed. São Paulo: LEJUS, 2004, p. 31 a 34.

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