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A inconstitucionalidade da MP 1171

Como amplamente divulgado, foi publicada no último dia 30 de abril a MP 1171/2023, promovendo relevantes alterações na legislação tributária federal, sobretudo no tocante ao imposto sobre a renda das pessoas físicas (IRPF) incidente sobre investimentos em sociedades controladas no exterior detidas por pessoas físicas (offshores) e estruturas envolvendo trusts no exterior, como também na tabela progressiva mensal. 

Em breve síntese, a MP estabelece que a pessoa física residente no Brasil deverá, a partir de 1° de janeiro de 2024, tributar em 31 de dezembro de cada ano os lucros provenientes de capital investido no exterior independentemente de distribuição[1], separadamente dos demais rendimentos e ganhos de capital, desde que esteja localizada em país com tributação favorecida (paraíso fiscal) ou que apurem renda ativa própria inferior a 80% da renda total[2]. 

Além disso, a pessoa física residente no país, nos termos do artigo 4°, §1°, deverá: 1) deter, de forma direta ou indireta, isoladamente ou em conjunto com outras partes, inclusive em função da existência de acordos de votos, direitos que lhe assegurem preponderância nas deliberações sociais ou poder de eleger ou destituir a maioria dos seus administradores; ou 2) possuir, direta ou indiretamente, isoladamente ou em conjunto com pessoas vinculadas, mais de 50% de participação no capital social, ou equivalente, ou nos direitos à percepção de seus lucros, ou ao recebimento de seus ativos na hipótese de sua liquidação. 

Sobre tais rendimentos incidirá IRPF na Declaração de Ajuste Anual (DAA) com base nas seguintes alíquotas (artigo 2°):  

  1. 0% sobre a parcela anual dos rendimentos que não ultrapassar R$ 6 mil;  
  2. 15% sobre a parcela anual dos rendimentos que exceder a R$ 6 mil e não ultrapassar R$ 50 mil;  
  3. 22,5% sobre a parcela anual dos rendimentos que ultrapassar R$ 50 mil. 

Ressalta-se, ainda, que a MP deve ser convertida em lei pelo Congresso Nacional no prazo de 60 dias, prorrogável por igual período, sob pena de perder a sua validade.  

Feita esta breve contextualização, abordaremos neste artigo, tão somente, a tributação do IRPF sobre os lucros nas offshores detidas por pessoas físicas, independentemente de distribuição. 

Pois bem. É de conhecimento que as offshores são usualmente utilizadas por pessoas físicas para investimento no mercado internacional e como instrumento de blindagem patrimonial contra riscos políticos e econômicos.  

Estrategicamente, a constituição de offshores é (ou era) um importante instrumento de planejamento tributário lícito, pois: 1) a carga tributária sobre a operação é reduzida; 2) dado o princípio da personalidade jurídica, o IRPF é devido somente no momento da efetiva transferência de recursos pela empresa para o sócio pessoa física residente no Brasil; 3) os ganhos e perdas são compensados de forma consolidada, apurando-se o resultado de todas as operações em conjunto; e 4) há segregação da origem dos recursos. 

Tratando a renda da pessoa jurídica como se da física fosse, o governo federal editou a referida MP, sob o fundamento de que o “diferimento da tributação das offshores cria uma vantagem financeira relevante para o investimento sob essa estrutura, em comparação com investimentos financeiros feitos diretamente pela pessoa física, que são tributados pelo regime de caixa, violando a isonomia tributária”, como mencionado na exposição de motivos. 

Ainda, para embasar a medida tomada, cita-se na exposição de motivos da MP que as regras anti-diferimento já são adotadas em inúmeros países: 

“(…) 13. A maioria dos países adota regras anti-diferimento da tributação de offshores, tanto para pessoas jurídicas, quanto para pessoas físicas. Podemos citar, como exemplos, na América Latina, o Chile, Colômbia e México, na União Europeia, a Alemanha, Áustria, Bélgica, França, Holanda, Portugal, e, no restante do mundo, os Estados Unidos, o Reino Unido e a Austrália, dentre outros.
O Projeto adequa o Brasil à experiência internacional, ao criar regras anti-diferimento específicas para evitar o acúmulo de capital em entidades controladas no exterior, sem tributação, por pessoas físicas residentes no país.”

No entanto, antes de verificar e se espelhar na legislação estrangeira, o governo federal deveria ter se atentado nas balizas impostas pela Constituição, bem como no ordenamento jurídico pátrio.  

Com efeito, o imposto de renda é de competência da União, como determina o artigo 153, III, da CF[3]. 

Dando concretude à norma constitucional, o artigo 43 do Código Tributário Nacional (CTN) estabelece que o Imposto de Renda tem como fato gerador “a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos, ou de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos como renda”. 

A doutrina, há muito, discute a diferença entre disponibilidade jurídica e disponibilidade econômica. Para não alongar a discussão, já que este não é o objetivo do presente artigo, a disponibilidade econômica/financeira é representada pelo dinheiro em caixa, enquanto a disponibilidade jurídica é a aquisição do direito à renda, sem ter havido ainda a sua percepção em dinheiro ou em valores (bens) suscetíveis de avaliação em dinheiro.  

Em razão disso, verifica-se que o critério material (auferir renda), está intimamente ligado ao critério temporal (momento em que a renda auferida deverá ser oferecida à tributação). Especificamente sobre o IRPF, o artigo 2º da Lei 7.713/1988, estabelece que o IRPF “será devido, mensalmente, à medida em que os rendimentos e ganhos de capital forem percebidos”.  

Assim, é forçoso convir que o aspecto temporal da regra matriz de incidência do IRPF está atrelado à disponibilidade financeira da renda do contribuinte (regime de caixa).  

Sobre o tema, vejamos as considerações do professor Ricardo Mariz de Oliveira: 

“(…) a legislação ordinária pode prever que o imposto devido pelas pessoas jurídicas seja calculado pela regra geral do chamado “regime de competência”, que considera as rendas adquiridas juridicamente no período-base mas não necessariamente recebidas em moeda, enquanto para as pessoas físicas o imposto é calculado pelo regime de caixa, sendo consideradas apenas as rendas já recebidas no período-base”[4].

Isto se deve, sobretudo, em respeito ao princípio da capacidade contributiva, insculpido no artigo 145, §1°, da CF[5], corolário em matéria tributária dos princípios da igualdade e da solidariedade, que constitui um dos objetivos da República, consagrados no artigo 3°, I, da CF[6]. 

Em relação àquele princípio, Fernando Aurélio Zilveti ensina que “é o princípio segundo o qual cada cidadão deve contribuir com as despesas públicas na exata proporção de sua capacidade econômica. (…) Também aceita como capacidade contributiva a divisão equitativa das despesas na medida de capacidade individual de suportar o encargo fiscal[7]. 

Ainda, a capacidade contributiva pode ser absoluta ou relativa. Conforme leciona Luís Eduardo Schoueri, “do ponto de vista relativo (subjetivo) a capacidade contributiva se aplica a todos os tributos, no sentido absoluto (objetivo), ela é um critério a ser empregado para distinguir quem será contribuinte[8].

Não obstante, a MP 1171 foi publicada em caráter diametralmente oposto ao princípio da capacidade contributiva, principalmente quanto ao seu caráter absoluto, uma vez que o seu objetivo é atrair a incidência do IRPF sobre valores não distribuídos pelas offshore ao sócio residente no Brasil, ou seja, valores que não estão disponíveis financeiramente aos sócios pessoas físicas. 

Em outras palavras, sem disponibilidade financeira (não distribuição de lucros pela offshore), o contribuinte não possui capacidade contributiva para pagar o tributo. O que há, neste momento, é uma mera expectativa de recebimento dos lucros auferidos. 

O professor Ricardo Mariz de Oliveira atinge o cerne da questão ao apontar que sem disponibilidade renda o contribuinte sequer tem capacidade financeira para o pagamento do tributo: 

Assim, quanto ao imposto de renda, somente há capacidade contributiva quando a renda estiver na disponibilidade do seu titular, porque é dela que se retira o valor da exação fiscal, e se ela não estiver disponível e o imposto for cobrado, o contribuinte terá que retirar do patrimônio os recursos necessários ao recolhimento[9]. 

Portanto, conclui-se que a MP 1171, ao estabelecer a incidência do IRPF sobre os lucros apurados a partir de 1º de janeiro de 2024 por offshores sem que haja a distribuição aos sócios, deixou de observar o aspecto temporal da regra matriz de incidência do IRPF, que está atrelado à disponibilidade financeira da renda (regime de caixa) do contribuinte, como disposto no artigo 2º da Lei 7.713/1988, afrontando, consequentemente, o princípio constitucional da capacidade contributiva. 

Nunca é demais lembrar que a teoria da personalidade jurídica diferencia a empresa e os seus sócios, atribuindo vida própria à primeira em relação aos segundos. Assim, até que eventuais lucros sejam distribuídos aos sócios, esses não lhe pertencem, de maneira a ser possível, inclusive, que a pessoa jurídica lhe imponha outro destino, que não a distribuição aos sócios, fulminando qualquer suposição de renda da pessoa física. 

Sabemos, é verdade, que as ficções jurídicas – como a presunção de recebimento de rendimentos em questão – são importantes mecanismos para a operação e funcionamento do direito tributário. Isso não significa, contudo, que não devam se submeter aos princípios e garantias constitucionais, o que faz a MP 1171 inconstitucional.  

Por fim, julgamos importante que a tecnicidade do direito constitucional tributário (e das garantias ao cidadão brasileiro) não sejam desconsideradas pelo Congresso Nacional para o privilégio de argumentos de natureza político-social. Que os corretos instrumentos sejam usados para os fins pretendidos. 

Sendo assim, o que aguardam os contribuintes é que o Congresso não converta em lei a Medida Provisória 1171/2023, de modo que a incidência do IRPF ocorra somente na efetiva distribuição dos lucros no Brasil.  

Caso essa não seja a posição do Legislativo federal, caberá a cada contribuinte, individualmente, buscar proteção contra essa inconstitucional investida da União.


[1] Artigo 4º Os lucros apurados a partir de 1º de janeiro de 2024 pelas entidades controladas no exterior por pessoas físicas residentes no País, enquadradas nas hipóteses previstas neste artigo, serão tributados em 31 de dezembro de cada ano, na forma prevista no artigo 2º. 

[2] Artigo 4°, § 4º Sujeitam-se ao regime tributário deste artigo somente as controladas que se enquadrarem em uma ou mais das seguintes hipóteses: 

I – estejam localizadas em país ou dependência com tributação favorecida ou sejam beneficiárias de regime fiscal privilegiado, de que tratam os artigos 24 e 24-A da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996; ou
II – apurem renda ativa própria inferior a 80% (oitenta por cento) da renda total. 

[3] Artigo 153. Compete à União instituir impostos sobre: (…) III – renda e proventos de qualquer natureza; 

[4] Fundamentos do imposto de renda. São Paulo: IBDT, 2020, vol. 1, p. 509. 

[5] Artigo 145, § 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte. 

[6] Artigo 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; 

[7] Capacidade contributiva e mínimo existencial. In: SCHOUERI, Luís Eduardo; ZILVETI, Fernando Aurélio (coords.). Direito Tributário. Estudos em homenagem a Brandão Machado. São Paulo: Dialética, 1998m p. 36-47 (38). 

[8] Direito Tributário. 11.ed. São Paulo: Saraivajur, 2022, p. 380. 

[9] Id., p. 509. 

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