• https://www.vakinha.com.br/vaquinha/sos-chuvas-rs-doe-para-o-rio-grande-do-sul

      New Page 1

    RSSFacebookYouTubeInstagramTwitterYouTubeYouTubeYouTubeYouTubeYouTubeYouTubeYouTube  

Van preta e arma na cabeça: Balneário Camboriú retira pessoas das ruas com internação à força

Na manhã de 24 de janeiro, Antônio* decidiu tentar roubar uma bicicleta no estacionamento da prefeitura de Biguaçu, diante dos olhos da Guarda Municipal, taxistas e outros moradores que passavam no local. Seu objetivo era ser preso para voltar para casa, em Balneário Camboriú.

À sombra dos arranha-céus da cidade catarinense conhecida como a “Dubai brasileira”, Antônio* e outros três homens afirmam ter sido levados à força pela Guarda Municipal para internação compulsória em Biguaçu, município da Grande Florianópolis.

Levado de Balneário Camboriú ao Redenção, Antônio* perambulou pelas ruas de Biguaçu até conseguir voltar para casa – Foto: Leo Munhoz/ND

Antônio* conta que estava na esquina da casa onde mora, em Balneário Camboriú, conversando com um amigo, quando viu se aproximar uma van preta Mercedes, descaracterizada. Era perto da meia-noite de 3 para 4 de janeiro.

Três agentes da Guarda Municipal os abordaram, afirmando que os levariam para um posto de saúde e, em seguida, para o CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) e depois seriam liberados. Naquela noite, no entanto, Antônio* não voltou para casa.

“Depois que eu saí do CRAS, que fica na rua do lado da minha casa, botaram a gente dentro do micro-ônibus. Um amigo meu perguntou para a Guarda Municipal o porquê daquilo, para onde a gente estava indo, e apanhou dentro do ônibus. É violência em cima de violência”, lembra.

Foi apenas na madrugada do dia 4 de janeiro de 2024, quando chegou no Instituto Redenção, na unidade de Biguaçu, que Antônio* descobriu que estava a 73km de casa.

Internações de Balneário Camboriú fogem à lei

A internação involuntária é prevista nas leis federais 10.216 e 11.343, que atendem o direito de pessoas com transtornos mentais ou dependentes químicos. Nesse tipo de internação, conforme a constituição, o paciente não consente com a internação e uma terceira pessoa se responsabiliza e autoriza a ação.

No entanto, a legislação prevê que a internação contra a vontade da pessoa só possa ocorrer excepcionalmente, com um laudo médico individual prévio e em uma instituição hospitalar especializada no atendimento de transtornos mentais e dependência química. Santa Catarina possui cinco instituições capacitadas para esse atendimento, mas o Instituto Redenção não está entre elas.

Conforme as leis, essas pessoas só poderiam ser internadas em Caps III (atende pessoas em intenso sofrimento psíquico decorrente de transtornos mentais graves e persistentes) ou Caps AD III (atende dependentes químicos em sofrimento psíquico intenso e necessidades de cuidados clínicos contínuos). Comunidades terapêuticas, como o Redenção, não se encaixam nessa categoria.

Procurada, a prefeitura de Balneário Camboriú informou que possui convênio com três comunidades terapêuticas na área de inclusão social e saúde: além do Instituto Redenção, a comunidade terapêutica Luz da Vida, localizada em Camboriú, e a instituição Árvore da Vida, de Itajaí.

Acordos investigados

Conforme o portal da transparência do município, desde meados de 2018, cerca de R$ 8,2 milhões foram empenhados para essas três clínicas e R$ 5,3 milhões pagos em convênios realizados para a abordagem e tratamento de pessoas em situação de rua.

A relação entre a prefeitura de Balneário Camboriú e o Instituto Redenção — comunidade terapêutica contratada para abordagem e acolhimento e foco desta reportagem — foi alvo de ao menos três investigações e uma medida judicial em 2023.

O instituto possui quatro unidades em Santa Catarina: duas em Camboriú, uma em Itajaí e outra em Biguaçu. Desde agosto de 2020, a prefeitura de Balneário Camboriú já empenhou R$ 1.943.241,51 e pagou R$ 1.206.377,81 para a comunidade terapêutica.

No entanto, Alceu Daud de Mello, proprietário do Instituto Redenção, alega que realiza apenas internações voluntárias, ou seja, quando as pessoas encaminhadas são admitidas por livre e espontânea vontade. Além disso, afirma que não pode responder pelas ações da Guarda Municipal de Balneário Camboriú.

“O Instituto Redenção participou de um edital para receber pessoas em situação de vulnerabilidade social e é o que fazemos. Damos tratamento para a dependência química,  assistência na parte psicológica, na parte social, na parte médica e tudo aquilo que está previsto em nosso Programa Terapêutico. EU NÃO SEI PORQUE É QUE VOCÊ ESTÁ INSISTINDO EM ACOLHIMENTO INVOLUNTÁRIO, VOCÊ ESTÁ FALANDO COM A INSTITUIÇÃO ERRADA”, escreveu em nota.

“A gente foi o caminho inteiro com a arma na cabeça”

Jairo* bebia uísque no estacionamento de um supermercado por volta das 21h de 3 de janeiro quando foi abordado pela van preta e pelos agentes da Guarda Municipal de Balneário Camboriú.

“Eu não sou usuário de drogas, sou alcoólatra e não incomodo ninguém, eu só estava bebendo com os outros rapazes”, disse.

Aos 47 anos, o metalúrgico conta que mora com a mãe em Barra Velha, no Norte de Santa Catarina, e estava em Balneário Camboriú para visitar o sobrinho.

“Eu disse que não era morador de rua, que eu estava na casa do meu sobrinho, mas não quiseram nem explicação, falaram ‘entra e vai embora’.

Jairo* foi para Biguaçu junto com Antônio* e com o que lembra ser mais 11 pessoas na van. Assim como o morador de Balneário Camboriú, o morador de Barra Velha não sabia para onde estava indo. Ele lembra de um homem abordado pela Guarda Municipal que apanhou durante o trajeto para o Instituto Redenção.

“Eles não me bateram, mas o rapaz que tava comigo eles bateram bastante, se a gente se mexesse eles iam atirar, a gente foi o caminho inteiro com a arma na cabeça”.

Como cães em carrocinha

A internação involuntária nos moldes de Balneário Camboriú foi proibida pela Justiça catarinense, que acusou a prefeitura de promover uma “higienização social”. Na decisão, de outubro de 2023, o desembargador Hélio do Valle Pereira comparou o tratamento do município com o dado a cachorros:

“Há menção, inclusive, de que alguns dos recolhidos são algemados, o que é repugnante. […] É dizer, até é prestada ajuda àqueles que querem, mas os que se negam são de todo modo recolhidos – não como pessoas livres, mas mais próximo do que se faz com cães, em que são colocados na carrocinha”.

Em entrevista ao Grupo ND, em 1º de fevereiro, o prefeito de Balneário Camboriú e presidente da Fecam (Federação Catarinense de Municípios) Fabrício Oliveira (PL), exaltou o projeto chamado por ele de “Clínica de Saúde”. Em sua visão, o projeto dá atendimento de saúde, psicológico e encaminha ao mercado de trabalho.

“Ele [pessoa em situação de rua] precisa da intervenção médica para que possa realmente dar mais dignidade à sua vida e é isso que nós estamos fazendo. Então está sendo exemplo, está sendo modelo, porque nós conseguimos dados e números positivos, sempre atentando bem ao respeito”, disse Oliveira.

O plano de Antônio* consistia em roubar uma bicicleta para ser preso e assim conseguir um telefonema para voltar para casa, em Balneário Camboriú. – Foto: Leo Munhoz/ND

“O cara tá com um fuzil e um cacete do teu lado e te manda entrar na van, você vai”

Felipe* conseguiu sair do Instituto Redenção em Biguaçu um dia depois de completar 41 anos. Ele segurava em suas mãos uma passagem para sua casa, em Balneário Piçarras, após uma semana internado. Ele conta que foi abordado pela Guarda Municipal, na mesma van preta mencionada por Antônio*, na madrugada de 18 de janeiro.

“Eu estava na praia Central, eles me pegaram e me trouxeram para cá [Biguaçu]. Vou fazer o que? Deixar eles me baterem? O cara tá com um fuzil e um cacete do teu lado e te manda entrar na van, você vai”, lembra.

Eduardo*, de 34 anos, lembra de recusar, mais de uma vez, o convite dos agentes da Guarda Municipal e da assistência social para ser internado. Em 8 de janeiro, ele atravessava a Avenida do Estado Dalmo Vieira, paralela à orla da cidade, quando foi chamado pelos agentes, que já o conheciam, em direção à van.

Curioso, Eduardo* foi até o local e recebeu o convite para ser internado, sem detalhes de onde seria.

“Eu falei que ‘eu não quero, eu tenho família, eu tô indo para minha casa’, eu tava com a chave de casa de pescoço, disse que na segunda eu ia para uma clínica que a igreja da minha mãe arrumou, aí neguei e eles me pegaram à força. Eu uso droga e tudo, mas eu tenho casa, minha família nunca vai me deixar”, lembra.

Prefeitura alega desconhecer casos de violência

Procurada para se pronunciar a respeito das irregularidades da abordagem e da violência da Guarda Municipal, a prefeitura de Balneário Camboriú afirmou não ter conhecimento dos casos.

“A Prefeitura de Balneário Camboriú desconhece essas denúncias, cabe lembrar que a Guarda Municipal somente acompanha os profissionais de Saúde e Inclusão Social, para garantir a segurança deles”, disse trecho do posicionamento.

A respeito das práticas denunciadas por Jairo*, Antônio*, Felipe* e Eduardo*, a assessoria do município alegou que “cumpre todas as determinações tidas no processo”, com base em determinações do MPSC (Ministério Público de Santa Catarina).


“À sombra dos arranha-céus” expõe denúncias e investigações a respeito das condutas de internação involuntária na cidade catarinense conhecida, por seus altos edifícios, como a “Dubai brasileira” – Imagem: Gil Jesus da Silva

A série de reportagens “À sombra dos arranha-céus” revela denúncias de ameaças e agressões nas condutas de internação involuntária de Balneário Camboriú junto ao Instituto Redenção. O convênio entre prefeitura e a comunidade terapêutica foi alvo de uma investigação interna e de duas investigações do MPSC, que apuram irregularidades no contrato e denúncias relacionadas à abordagem social.

*Embora os personagens desta série de reportagens sejam reais, os nomes citados são fictícios e resguardam as identidades das fontes

Adicionar aos favoritos o Link permanente.

Os comentários estão desativados.

  • New Page 1