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A eficácia temporal da decisão do STF no caso das sobras eleitorais

Em 28 de fevereiro de 2024, o Supremo Tribunal Federal (STF) finalizou o julgamento das ADIs 7.228, 7.263 e 7.325, em que se questionou dispositivo da Lei 14.211/2011, no ponto em que alterou normas do Código Eleitoral. As alterações normativas referiam-se, basicamente, a uma nova fórmula de cálculo das sobras eleitorais nas eleições proporcionais (para vereadores, deputados estaduais, distritais e federais), em relação às cadeiras remanescentes a serem atribuídas às legendas partidárias após a distribuição inicial conforme o atingimento do quociente eleitoral.

As normas impugnadas previam que, após a distribuição inicial das cadeiras, poderiam participaram da divisão das sobras eleitorais os partidos que tivessem alcançado pelo menos 80% do quociente eleitoral e os candidatos que atingissem em votação individual pelo menos 20% do quociente eleitoral (regra 80/20).

As demais vagas seriam distribuídas entre esses mesmos partidos, sem a exigência de votação individual mínima (sobras das sobras). Em ambos os casos, a distribuição das cadeiras deveria ocorrer pelas maiores médias eleitorais dos partidos. Já no cenário em que nenhum partido alcançasse o quociente eleitoral, as cadeiras seriam preenchidas pelos candidatos mais votados, ou seja, pelo sistema majoritário simples.

Por maioria de votos, nos termos do voto do relator (proferido em ambiente virtual), ministro Ricardo Lewandowski, o STF, com base no princípio do pluralismo político:

  1. conferiu interpretação conforme à Constituição ao § 2º do art. 109 do Código Eleitoral, de modo que as sobras eleitorais devem ser distribuídas pela regra “80/20” e, caso ainda restem cadeiras (sobras das sobras), elas deverão ser distribuídas entre todos os partidos participantes do pleito e seus candidatos, independentemente de terem atingido os 80% ou 20% do quociente eleitoral, respectivamente; e
  2. declarou a inconstitucionalidade do art. 111 do Código Eleitoral e do art. 13 da Resolução do TSE 23.677/2021, para, no caso de nenhum partido atingir o quociente eleitoral, distribuírem-se as cadeiras pela regra “80/20” e, na sequência, por todos os partidos que participaram do pleito e seus candidatos.

Cabe lembrar que as eleições de 2022 já haviam sido realizadas e, por isso, haveria mudança nas cadeiras distribuídas na Câmara dos Deputados caso o entendimento do tribunal fosse aplicado com eficácia ex tunc. Desse modo, o relator, após retomar a tese fixada para o Tema 564 de Repercussão Geral[1], entendeu que “convém atribuir à decisão efeitos ex nunc, seja em respeito ao princípio da anualidade eleitoral, abrigado no artigo 16 da Constituição, seja em observância ao postulado da segurança jurídica, a que se refere o artigo 27 da Lei 9.868/1999”.[2] Neste ponto, o voto do relator prevaleceu por seis votos, havendo cinco votos contrários, que entendiam pela produção de efeitos ex tunc da decisão.

Percebe-se que o relator utilizou dois fundamentos distintos para a justificar a atribuição de eficácia ex nunc à decisão da Corte: o art. 16 da Constituição Federal e o art. 27 da Lei 9.868/1999. O presente artigo, portanto, tem o objetivo de responder às seguintes duas questões:

  1. do ponto de vista do colegiado, ambas as normas foram utilizadas como justificadoras para a atribuição de eficácia ex nunc à decisão?
  2. há diferenças jurídicas na utilização de uma ou outra para a atribuição de eficácia ex nunc a uma decisão do STF que declara a inconstitucionalidade de uma norma legislativa eleitoral?

Como ainda não houve a publicação do acórdão, não é possível conhecer em maior profundidade todos os argumentos utilizados pelos ministros em seus votos. Entretanto, após o caso ser levado ao plenário físico, houve profundos debates. Pretende-se contribuir com a reflexão sobre a modulação de efeitos das decisões da jurisdição constitucional em contextos eleitorais, apontando pontos sensíveis que – espera-se – sejam esclarecidos quando da publicação do acórdão.

De um lado, a maioria de seis ministros atribuiu eficácia ex nunc à decisão, de modo que ela produza efeitos somente a partir das eleições ocorridas em 2024, fundamentando-se expressamente no art. 16 da Constituição Federal. Nesse sentido, o ministro André Mendonça destacou que, em razão de essa norma constitucional ser superior à legislação ordinária, “a aplicação do princípio da anualidade eleitoral, ele depende, na minha visão, de maioria simples, mínimo de 6 votos”.[3]

Em sentido semelhante, o ministro Roberto Barroso entendeu que a decisão do tribunal interferiria no processo eleitoral e, com base no art. 16 da Constituição Federal, não poderia produzir efeitos retroativos às eleições de 2022, pontuando: “nós já temos, repetidamente, em muitos outros casos, onde a Constituição fala lei, vale para Emenda Constitucional e vale, num mundo em que a jurisprudência passou a ser fonte normativa do direito, uma mudança de jurisprudência é a criação de uma lei nova, assim me parece”.[4]

De outro lado, cinco ministros entenderam pela produção de efeitos ex tunc pela decisão, não devendo se falar em incidência da norma do art. 16 da Constituição Federal, mas sim da possibilidade de eventual modulação de efeitos, nos termos do art. 27 da Lei 9.868/1999.

O ministro Gilmar Mendes, por exemplo, realizou o distinguishing em relação a precedente do tribunal[5] e registrou que o caso não se tratava de mudança de jurisprudência e, portanto, “deve ser resolvida não mediante a invocação do princípio da anterioridade ou da anualidade, mas no âmbito de eventual modulação de efeitos”. O ministro Alexandre de Moraes destacou o “perigo do precedente para as próximas eleições” que estava posto em debate: “amanhã é editada uma lei absurda, um dia antes do início do período da anualidade. Então, as eleições 5 de outubro no outro ano, dia 4 de outubro ela é publicada, ela é válida, absurda. Entram com ação direta, mesmo que nós declaremos [sua inconstitucionalidade], ela só vai se aplicar na outra eleição”.

Como já exposto em outro trabalho[6], deve ser lembrado que os sistemas jurídicos contemporâneos, tendo em vista especialmente o princípio da segurança jurídica, adotam “fórmulas de preclusão” [7], ou seja, hipóteses de manutenção dos efeitos de normas e atos eventualmente inválidos, incluídos os inconstitucionais.

Há dois tipos de fórmulas de preclusão: a) as definidas de antemão pelo legislador (ope legis) e b) a possibilidade de que a modulação de efeitos das decisões que reconhecem a invalidade de normas e atos seja realizada por meio de decisão judicial com base em princípios constitucionais, como o da segurança jurídica[8]. Desse modo, diante de norma jurídica inconstitucional, é necessário identificar se há alguma regra de preclusão ope legis ou necessidade de decisão judicial para modulação de seus efeitos.

Em relação à preclusão ope legis, trata-se de uma opção já feita pelo legislador mediante regras jurídicas. Retomando-se as palavras do ministro Teori Zavascki sobre essas fórmulas de preclusão: “São impedimentos ou restrições dessa natureza, por exemplo, a prescrição e a decadência. Isso significa que, embora formados com base em preceito normativo declarado inconstitucional (e, portanto, excluído do ordenamento jurídico), certos atos pretéritos, sejam públicos, sejam privados, não ficam sujeitos aos efeitos da superveniente declaração  de  inconstitucionalidade (…)”[9].

Já a modulação de efeitos por decisão judicial é fundada em outros dispositivos legais (como, em discussão no presente caso, o art. 27 da Lei 9.868/1999), que demandam do intérprete a correta avaliação dos princípios em jogo, especialmente o da segurança jurídica, para definição, argumentativamente justificada, de qual deve ser a solução do caso[10].

A distinção entre fórmulas de preclusão ope legis e modulação de efeitos por decisão judicial é relevante, pois são fundadas em processos argumentativos distintos. As fórmulas de preclusão ope legis são estabelecidas em regras jurídicas e, por isso, são mais dificilmente superadas em casos concretos. Já a modulação de efeitos por decisão judicial com base em princípios exige procedimento de justificação mais amplo (mas não discricionário) conforme as circunstâncias do caso concreto.

Voltando à decisão em análise, pelos votos proferidos em plenário, surgem três possíveis interpretações de qual norma embasou a eficácia ex nunc da decisão do tribunal. Respondendo à segunda pergunta do presente artigo, essas três possíveis interpretações apontam para diferentes consequências jurídicas.

A primeira seria no sentido de que a interpretação da maioria do tribunal a respeito do art. 16 da Constituição Federal aponta para a existência de regra constitucional que estabelece uma fórmula de preclusão ope legis das decisões que declaram a inconstitucionalidade de leis eleitorais. De acordo com esse entendimento, a declaração de inconstitucionalidade de uma norma legislativa eleitoral somente poderia produzir efeitos para as eleições que ocorrerem após um ano a partir da decisão do tribunal.

Se esse for o caso, retomando-se as colocações do ministro Alexandre de Moraes, os “perigos do precedente” são grandes. Isso porque realmente corre-se o risco de esvaziamento de uma das principais funções da jurisdição constitucional: desfazer em caráter ex tunc os efeitos jurídicos das normas e atos inconstitucionais, mantendo hígida a supremacia constitucional.

Em face de uma lei eleitoral inconstitucional, caso se adote uma fórmula rígida de preclusão com base no art. 16 da Constituição Federal, não restará alternativa a não ser a declaração de inconstitucionalidade com efeitos prospectivos – o que poderá levar a situações de manifestas violações à Constituição Federal sem remédio judicial efetivo para a invalidação e ineficácia de atos praticados com base nas normas declaradas inconstitucionais.

Não se pode, portanto, concordar, sem maiores ressalvas, com a ideia de que as decisões judiciais equivalem às leis para fins de aplicação da regra da anualidade do art. 16 da Constituição Federal. Há dois regimes jurídicos distintos para a proteção da segurança jurídica e isonomia  em contextos eleitorais. No caso de legislação nova, em que há uma decisão política de modificar as condições de competitividade entre os candidatos, aplica-se o art. 16 da Constituição Federal.

No caso de norma legislativa inconstitucional, deve ser reconhecida sua inconstitucionalidade ex tunc, nos moldes da tradição constitucional brasileira, podendo haver modulação de efeitos dessa decisão, nos casos admitidos na legislação, especialmente nos termos do art. 27 da Lei nº 9.868/1999, que exige quórum diferenciado para tanto.

A segunda possibilidade é que se entenda que o caso envolveu mudança de jurisprudência e que, nos termos do art. 927, §§ 3º e 4º, do CPC, isso poderia ser feito sem o quórum do art. 27 da Lei 9.868/1999[11]. Caso adotado esse entendimento, o ponto a ser esclarecido aqui é efetivamente identificar se houve ou não modificação de jurisprudência no caso em análise.

Um argumento mencionado durante o julgamento, é o de que havia o art. 13 da Resolução 23.677/2021 do TSE (declarado inconstitucional na decisão aqui analisada), que praticamente reproduziu o então art. 111 do Código Eleitoral. De todo modo, como destacado pelo ministro Gilmar Mendes, tratou-se do primeiro caso em que o STF apreciou a matéria da constitucionalidade da lei impugnada. Aqui, portanto, parece não haver mudança de jurisprudência, uma vez que se tratava de ato administrativo normativo e não situação em que “uma decisão judicial afasta-se, pela primeira vez, de uma outra decisão judicial eficaz sobre a mesma questão”[12].

Além disso, espera-se que o acórdão a ser publicado possa efetivamente analisar a ratio decidendi dos precedentes invocados neste ponto, especialmente o que deu origem ao já mencionado Tema 564, para verificar se também as circunstâncias fáticas e jurídicas do precedente estão presentes nas ações ora julgadas (com destaque para a circunstância de haver jurisprudência estável do TSE em sentido contrário no precedente que deu origem ao Tema 564)[13].

A terceira possibilidade é que o tribunal definiu a eficácia ex nunc de sua decisão com base no princípio da segurança jurídica aplicado a contextos eleitorais. Eleições foram realizadas, candidatos diplomados e empossados, mandatos estão em exercício. Há diversos elementos fáticos que apontam para a produção de eficácia do princípio da segurança jurídica para estabilização jurídica dessas situações.

Contudo, a utilização do princípio da segurança jurídica como fundamento para modulação de efeitos de decisões de inconstitucionalidade atrai a incidência do art. 27 da Lei 9.868/1999[14], que exige quórum qualificado de 2/3 dos membros do tribunal para a modulação de efeitos ex nunc – quórum que não foi atingido nesse ponto, como visto acima. Desse modo, espera que, caso este seja o fundamento compartilhado pela maioria da Corte, possa adequar-se o julgado neste ponto, proclamando o resultado pela eficácia ex tunc da decisão, ainda que em sede de eventuais embargos de declaração.

Como se percebe, a própria conceituação do significado da modulação de efeitos das decisões em sede de controle de constitucionalidade e seus requisitos continua a ser questão que desperta debates no STF e ainda carece de clareza conceitual e dogmática.

A decisão analisada tratou de caso específico da seara eleitoral, mas sabe-se que o tema ganha contornos também sensíveis e específicos em matérias, por exemplo, penais, tributárias e administrativas. Trata-se de tarefa de grande importância para que elementos centrais da nossa jurisdição constitucional, como supremacia constitucional, segurança jurídica e respeito a direitos fundamentais possa ser devidamente avaliada e decidida com base em argumentos claros e coerentes na jurisprudência do tribunal.


[1] STF, Pleno, RE 637.485, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 01/08/2012.  Tese fixada: “(…) II- As decisões do Tribunal Superior Eleitoral que, no curso do pleito eleitoral ou logo após o seu encerramento, impliquem mudança de jurisprudência, não têm aplicabilidade imediata ao caso concreto e somente terão eficácia sobre outros casos no pleito eleitoral posterior”.

[2] STF, ADI 7.228, Pleno, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 28/02/2024, p. 10 (voto proferido em ambiente virtual iniciado em 25/08/2023).

[3] STF, ADI 7.228, Pleno, Voto do Min. André Mendonça proferido na sessão de 21/02/2024.

[4] STF, ADI 7.228, Pleno, Voto do Min. Roberto Barroso proferido na sessão de 28/02/2024.

[5] STF, ADI 5.970, Pleno, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 07/01/2021 (caso dos “showmícios” eleitorais).

[6] PINHEIRO, Victor Marcel. Uma proposta de compreensão da modulação de efeitos das decisões da jurisdição constitucional. Revista Publicum, V. 4, 2018, p. 153-180, p. 166.

[7] MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional, 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 305-306.

[8]  Cf. NAVARRO, Carlos Alberto. Declaração de inconstitucionalidade: a modulação de efeitos temporais – teoria constitucional e aplicação. Curitiba: Juruá, 2014, p. 122.

[9] STF, RE 730.462, Pleno, Rel. Min. Teori Zavascki, j. 28/08/2015, p. 4-5.

[10] Concorda-se aqui com as observações de Georges Abboud de que não se pode admitir que a modulação de efeitos seja feita com base em noção de discricionariedade forte pelo Poder Judiciário, “com base em argumentos vagos e imprecisos”, em: ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro, 5ª ed. São Paulo: Thomson Reuters, Revista dos Tribunais, 2021, p. 853.

[11] Para retrospecto recente de decisões do STF e STJ a respeito, cf. SARLET, Ingo. Segurança jurídica, mudança da jurisprudência e modulação de efeitos. Consultor Jurídico. 15/09/2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-set-15/direitos-fundamentais-seguranca-juridica-mudanca-jurisprudencia-modulacao/

[12] Conceito adotado por Humberto Ávila, em: ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica, 6ª ed. São Paulo: Malheiros Editora, 2021, p. 499.

[13] Cabe lembrar as advertências de Lenio Streck de que “súmula não é precedente”, o mesmo podendo ser dito das teses, em: STRECK, Lenio. Precedentes judiciais e hermenêutica: o sentido da vinculação no CPC/2015, 3ª ed. Salvador: JusPodivm, 2021, p. 107.

[14] O art. 27 da Lei nº 9.868/1999 teve sua constitucionalidade reconhecida pelo STF em julgado recente (STF, ADI 2.154, Pleno, Red. para Acórdão Min. Cármen Lúcia, j. 03/04/2023), sem prejuízo de manifestações, em caráter de obiter dictum, por sua possível inconstitucionalidade (voto do Min. Roberto Barroso, p. 198) ou, de lege ferenda, sua eventual atual inadequação ao direito brasileiro (voto do Min. Gilmar Mendes, p. 196).

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