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Uma história de dois julgamentos

Era uma vez dois casos criminais muito parecidos. Ambos envolviam violência sexual praticada por homens ricos contra mulheres em casas noturnas sofisticadas. Ambos foram denunciados às autoridades policiais. Ambos traumatizaram pesadamente as vítimas. Mas, apesar de tanto em comum, os dois tiveram desfechos bastante distintos.

No primeiro, o ex-jogador de futebol Daniel Alves foi condenado a quatro anos e meio de prisão por um tribunal de Barcelona, Espanha, em 22 de fevereiro último. O ex-atleta fora acusado por uma jovem de tê-la estuprado no banheiro de uma boate na capital da Catalunha em 2022[1].

No segundo, o empresário André de Camargo Aranha foi absolvido da acusação de estupro de vulnerável apresentada por Mariana Ferrer, uma jovem promotora de eventos, que também relatou ter sofrido violência sexual no banheiro de um beach club em Florianópolis, Santa Catarina, em 2018.

Daniel Alves mudou sua versão do acontecido por cinco vezes, na primeira delas, negou conhecer a vítima; na última, admitiu ter praticado sexo consensual com a jovem, embriagado[2]. André Aranha mudou sua versão uma vez, inicialmente negando contato sexual com Mariana Ferrer, para mais tarde afirmar que havia ocorrido sexo oral entre eles – ainda que sêmen dele tenha sido encontrado nas roupas da vítima. Os dois réus foram contraditados por provas colhidas no decorrer de seus respectivos processos[3].

Mais do que a disparidade de resultados nos julgamentos, foi espantosa a diferença de tratamento dispensado às duas mulheres.

Na Espanha, a vítima foi amparada desde o primeiro momento pela própria equipe do estabelecimento em que se encontrava. Foi orientada a buscar o auxílio dos serviços policiais e de saúde, além de ter sido protegida durante todo o processo judicial. A coleta de provas no local incluiu as gravações das câmeras de segurança, fundamentais na instrução processual.

No Brasil, Mariana Ferrer não recebeu assistência do local em que trabalhava. Reportou seu caso às autoridades policiais mais tarde, com o auxílio da mãe. Afirmou que não se lembrava do que houve, pois supunha ter sido drogada no estabelecimento. Houve coleta de evidências de seu caso, mas as gravações de 37 câmeras de segurança se perderam. Embora não tenham sido encontrados vestígios de entorpecentes ou álcool em seu sangue, suas interações com amigos no Whatsapp, logo após o ocorrido, foram erráticas e sugeriam alteração de estado de consciência. O motorista de aplicativo que a levou para casa testemunhou que ela parecia drogada[4].

Durante a instrução processual, a vítima espanhola foi tratada com total respeito e cuidado. Seu depoimento foi feito em uma sala reservada, levando-se em conta sua fragilidade emocional após o ocorrido. Ela foi tratada com a dignidade e a empatia que um caso desse gênero merece.

No tribunal catarinense, Mariana Ferrer foi enxovalhada pelo advogado de defesa de André Aranha, Cláudio Gastão da Rosa Filho, que adotou a estratégia de desqualificar a jovem, como se esta fosse uma pessoa mesquinha, buscando extorquir dinheiro do réu.  Desesperada, implorou por proteção ao magistrado do caso, o  Juiz Rudson Marcos, sem que ele agisse de forma enérgica para conter o advogado de defesa. Essa inação foi compartilhada pelo Promotor Thiago Carriço. Os dois representantes do Estado, não agiram para conter a virulência e o desrespeito dirigidos à vítima[5]. Os três, advogado, juiz e promotor foram denunciados aos respectivos órgãos de classe. O juiz foi advertido pelo CNJ por sua falha na condução do processo[6].

Por sinal, a leniência observada no julgamento ensejou a aprovação da Lei 14.245/2021 – Lei Mari Ferrer – que protege a dignidade de vítimas de violência sexual durante os procedimentos judiciais[7].

Daniel Alves foi condenado, porque na Espanha vige o princípio de que só o sim é sim. A concordância da mulher para o ato sexual é indispensável para que ele não seja considerado crime.

André Aranha foi absolvido porque, na interpretação do promotor do caso, não havia provas de que a vítima fosse incapaz de decidir ou não pelo sexo. Assim, na interpretação da promotoria, não existiu o estupro de vulnerável. Vale lembrar que Thiago Carriço substituiu o promotor inicial do caso, Alexandre Piazza, que entendia haver elementos suficientes para a condenação[8].

A legislação espanhola inspirou o parlamento brasileiro a aprovar a Lei 14.786/2023, que implanta o protocolo não é não, voltado à proteção das mulheres contra a importunação e a violência sexual em ambientes como casas de espetáculo, shows e boates[9]. A norma define que o poder público e a iniciativa privada atuem em conjunto para preservar a integridade da vítima e proteger-lhe a dignidade. Sua vigência se inicia no dia 26 de junho deste ano.

O desenvolvimento de normas inovadoras para proteger as vítimas de violência sexual é um avanço importante num país que deseja alcançar a equidade de gênero. No caso de Mari Ferrer, se já houvesse a existência da lei que leva seu nome e do protocolo não é não, o destino dessa jovem teria sido bastante diferente.

É óbvio que tanto a vítima espanhola quanto a brasileira carregarão marcas de suas experiências por toda a vida. Contudo, a jovem na Espanha não foi submetida a uma revitimização durante o processo judicial, enquanto a do Brasil foi agredida de novas formas e, ao buscar justiça, encontrou mais sofrimento.

Parece igualmente óbvio que apenas a inovação legal não será suficiente para proteger novas Marianas nas salas de uma corte. Faz-se necessária uma mudança cultural profunda em nossa sociedade, que reprove quaisquer atitudes machistas em casos de violência contra a mulher.

Importante destacar que, segundo uma pesquisa do Datafolha, 46,7% das brasileiras foram alvo de assédio sexual em 2022[10]. Tal contexto sociocultural alimenta atuações como a do advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho contra Mariana Ferrer. Se uma a cada duas mulheres é assediada no país, há uma permissividade para com esse comportamento, permissividade que contaminou, como se viu, até mesmo o ambiente judicial.

Ataques à reputação das vítimas deveriam ser fortemente repudiados pelos órgãos de classe dos operadores do direito. O objetivo do tribunal é a busca pela verdade dos fatos. O clichê da mulher aproveitadora já deveria ter sido extinto há décadas. A vitória conseguida por meios torpes é, na verdade, uma derrota para toda a sociedade.

Uma pessoa submetida a violência sexual já precisa sobrepujar o trauma, o medo e a vergonha para vir a público denunciar a agressão sofrida. O processo de repassar o acontecido está repleto de dor. O mínimo que se espera em uma situação dessas é que a acusadora – assista-lhe ou não a razão – não sofra violências extras no ambiente em que busca reparação.

Ainda que haja o argumento de o caso de Mariana Ferrer ser uma exceção, ele é um indicativo de que existem problemas graves em nosso sistema de proteção às vítimas. Se tal violência ocorre sem intervenção, no espaço controlado de um tribunal (mesmo que virtual), o que pode estar acontecendo nos inquéritos e fases anteriores ao julgamento?

Buscar que essas novas legislações se concretizem no cotidiano das cortes precisa ser a meta de advogado(a)s, promotore(a)s e juíze(a)s de todo o país. Deve igualmente ser meta de cada cidadã e cidadão do Brasil, pois não há justiça verdadeira sem a preservação da dignidade humana.


[1]https://www.bbc.com/portuguese/articles/cz7kk9y4en8o. Acesso em 26/02/2024.

[2]https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/versoes-de-daniel-alves-podem-prejudicar-a-percepcao-dos-magistrados-diz-criminalista/. Acesso em 26/02/2024.

[3]https://www.bbc.com/portuguese/articles/cz7kk9y4en8o e https://piaui.folha.uol.com.br/materia/noite-que-nunca-terminou/. Acesso em 27/02/2024.

[4]https://piaui.folha.uol.com.br/materia/noite-que-nunca-terminou/. Acesso em 27/02/2024.

[5]https://www.intercept.com.br/2020/11/03/influencer-mariana-ferrer-estupro-culposo/ e https://www.intercept.com.br/2020/12/20/juiza-determinou-edicao-reportagem-mariana-ferrer/. Acesso em 27/02/2024.

[6]https://www.jota.info/justica/cnj-pune-juiz-do-caso-mariana-ferrer-com-advertencia-por-postura-em-audiencia-14112023. Acesso em 27/02/2024.

[7]https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/11/23/sancionada-lei-mariana-ferrer-que-protege-vitimas-de-crimes-sexuais-em-julgamentos. Acesso em 27/02/2024.

[8]https://www.intercept.com.br/2020/11/03/influencer-mariana-ferrer-estupro-culposo/. Acesso em 27/02/2024.

[9]https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/l14786.htm. Acesso em 27/02/2024.

[10]https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2023/03/mais-da-metade-das-brasileiras-sofreu-algum-tipo-de-assedio-sexual-em-2022-mostra-pesquisa.ghtml. Acesso em 27/02/2023.

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