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As araras-vermelhas do Morro do Diabo


Localizado no extremo oeste de São Paulo, parque estadual abriga uma das últimas populações da espécie na Mata Atlântica. Araras-vermelhas do Parque Estadual Morro do Diabo
Andréa Soares Pires
Mesmo antes de chegarem a América, os europeus já eram fascinados pelos Psittacidae, família de aves da qual fazem parte araras, papagaios, periquitos, tiribas, maitacas e seus parentes próximos. Embora já conhecessem esses animais da África e da Ásia, a quantidade e a diversidade de psitacídeos encontrados no Novo Mundo impressionou muito os recém chegados.
Na carta de Pero Vaz de Caminha é mencionado que, no dia 27 de abril, dois marinheiros que foram ao encontro dos indígenas e trocaram com eles “por coisas de pouco valor, papagaios vermelhos muito grandes e formosos e dois verdes pequeninos”.
No dia seguinte, já em terra firme, Caminha evoca novamente os psitacídeos em sua carta, em uma passagem que serviria inclusive de inspiração para a criação do Dia Nacional do Observador de Aves, celebrado no dia 28 de abril. “Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha, atravessavam alguns papagaios por essas árvores – alguns deles verdes e outros pardos grandes e pequenos – de maneira que me parece que haverá nesta terra muitos”.
Os papagaios “verdes pequeninos”, “verdes”, “pardos”, “grandes e pequenos” são de difícil identificação. Já quanto aos “papagaios vermelhos muito grandes e formosos”, levando em conta a distribuição geográfica das araras brasileiras, é difícil pensar em outra espécie que não seja a arara-vermelha (Ara chloropterus).
De Caminha em diante, os psitacídeos estariam quase sempre presentes em tudo que se produzisse sobre o Novo Mundo durante o início do séc 16, incluindo no primeiro mapa conhecido sobre o território brasileiro. O Planisfério de Cantino, datado de 1502, traz duas araracangas (Ara macao) desenhadas sobre o território recém descoberto.
Planisfério de Cantino, feito em 1502. Detalhe mostrando duas araracangas sobre o território brasileiro
Alberto Cantino
Outros dois mapas do início do século 16 também deixam claro o fascínio dos europeus pelas araras. No famoso mapa do cartógrafo alemão Martin Waldseemüller, publicado em 1507 e que batiza a América, há o desenho de uma arara e logo abaixo escrito (“rubei psitaci”, ou seja “papagaio vermelho”).
Já em 1522, é publicado um recorte desse mapa feito por Lorens Fries e sobre o território brasileiro, além de “aqui há canibais”, pode ser lido “Terra Papagalli” (terra dos papagaios), nome comumente utilizado para se referir ao Brasil no início do século 16.
De fato, somos a “Terra dos Papagaios”, o Brasil é o país do mundo com a maior riqueza de psitacídeos. A arara-vermelha é apenas uma das 87 espécies de psitacídeos da terra dos papagaios, mas seu simbolismo como uma das primeiras aves registradas pelos europeus no Brasil é marcante.
Detalhe do mapa de Waldseemüller, de 1507, mostrando pela primeira vez o uso da palavra América e o “papagaio vermelho” sobre o novo continente
Martin Waldseemüller
No entanto, isso não foi suficiente para garantir a proteção dela, já que a espécie atualmente está localmente extinta não apenas no lugar onde foi registrada pela primeira vez, no sul da Bahia, mas em toda região costeira da Mata Atlântica, onde ocorria do norte do Rio de Janeiro até a o estado baiano, incluindo o extremo leste de Minas Gerais e Espírito Santo.
A última população de araras-vermelhas que habita a Mata Atlântica está restrita a uma região que engloba o extremo norte do Paraná, sudeste do Mato Grosso do Sul e extremo oeste de São Paulo, onde seu principal refúgio é o Parque Estadual do Morro do Diabo.
Já observei muitas vezes a arara-vermelha na Amazônia e no Cerrado, mas sempre quis encontrar a espécie na Mata Atlântica. Por isso, quando a pesquisadora Andrea Soares Pires me convidou para participar de um encontro do projeto Monitora BIOSP, no Parque Estadual do Morro do Diabo, imediatamente lembrei das araras.
Histórias Naturais é a coluna semanal do biólogo Luciano Lima no Terra da Gente
Arte/TG
O evento foi organizado pela Fundação Florestal com o objetivo de discutir o monitoramento da biodiversidade no estado de São Paulo.
Durante quatro dias intensos analisamos resultados e discutimos métodos sobre como monitorar a biodiversidade em diferentes unidades de conservação estaduais. Sempre que podia, eu fazia uma pequena caminhada ou dava uma espichada de olho pela janela com esperança de ver as araras, já que a Andrea tinha me dito que elas não era muito difíceis de ver próximo a sede.
No segundo dia, ouvi as araras voando ao longe, corri discretamente para fora do auditório, mas consegui observar apenas um vulto desaparecendo ao longe. Situações parecidas aconteceram outras duas vezes até que no último dia, enquanto caminhava pela área próxima à sede do parque, reparei alguns participantes do evento olhando fixamente para o topo de uma árvore e apontando suas câmeras fotográficas.
Pessoas com binóculos e câmeras erguidos em uma mesma direção são o sinal universal de “tem um bicho legal aqui”. Me aproximei e lá estava um casal de araras-vermelhas se secando do banho de chuva que tinham acabado de tomar. O céu cinzento atrapalhou um pouco a foto, mas a ave virada parcialmente de costas e me olhando fixamente me deixou emocionado.
Arara-vermelha encontrada no Parque Estadual do Morro do Diabo, no estado de SP
Luciano Lima
Existem diversas histórias sobre a origem do nome do Morro do Diabo. A mais repetida conta que um massacre indígena que foi vingado com a morte de muitos bandeirantes causou terror nos primeiros moradores da região. Outra versão argumenta que havia um cemitério indígena no morro. Não existe nenhuma história que relacione o nome Morro do Diabo com a presença das araras, mas no imaginário dos europeus sobre os psitacídeos essa associação seria possível.
Em um interessantíssimo artigo publicado em 2017, o zoólogo Dante Martins Teixeira apresenta um apanhado histórico sobre a associação que os europeus costumavam fazer entre papagaios e outros psitacídeos com o diabo.
Para os cristãos, especialmente dos séculos 16 e 17, apenas os humanos, anjos e demônios possuíam o dom da fala. Não sendo considerados humanos e nem anjos, sobrava para os psitacídeos o papel de manifestações de demônios.
Durante a Idade Média, no entanto, o raciocínio era o oposto e essas aves eram vistas por muitos como seres sagrados. Por conta da capacidade de “falar”, eram consideradas como animais símbolos da Anunciação.
Araras-vermelhas encantam os seres humanos há centenas de anos
Andréa Soares Pires
Sagrado ou profano, não importa, essas associações são apenas mais uma prova do quão esses animais são fantásticos e há tempos nos fascinam. Recentemente conversamos no podcast Sons da Terra sobre o motivo pelo qual alguns psitacídeos “falam”, para ouvir o podcast clique neste link.
Outra lenda associada ao Morro do Diabo relata que quem subir o morro dez vezes irá encontrar o próprio diabo. Esse ser eu não faço questão de observar nem na Mata Atlântica nem em lugar nenhum, mas se fosse preciso subir o morro dez vezes para encontrar a arara-vermelha, eu toparia correr o risco.
Além da arara-vermelha o Parque Estadual do Morro do Diabo é o lar de diversas outras espécies de animais emblemáticos e considerados ameaçados de extinção. Onça-pintada, anta e mico-leão-preto são apenas alguns dos “vizinhos” da arara-vermelha. Dentro desse contexto, talvez se justificasse a mudança do nome do Morro do Diabo para Morro Ararate, o monte onde encalhou a Arca de Noé.
*Luciano Lima é ornitólogo e faz parte da equipe do Terra da Gente.
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