• New Page 1

    RSSFacebookYouTubeInstagramTwitterYouTubeYouTubeYouTubeYouTubeYouTubeYouTubeYouTube  

Relato tocante da operação humanitária que uniu heróis e resgatou esperanças em meio à tragédia

“Com a missão de enviar mantimentos para o outro lado da enchente, onde familiares da minha esposa estavam, partimos de Gravataí para uma verdadeira operação de guerra em São Leopoldo. Lá, mais de 20 pessoas estavam precisando de alimentos e água.

A operação era para ser simples. Consistia em conseguir um barco para atravessar todo o centro de São Leopoldo, partindo do “front” da Mauá, e fazer chegarem os mantimentos do lado oposto da BR-116, na região da Scharlau. Em tempos normais, uma viagem de 5 minutos de carro. Três sinaleiras, uma ponte, um viaduto, algumas rótulas e avenidas, e pronto! Nos dias tensos da maior tragédia natural do Brasil, uma epopéia complexa.

Sabe aqueles filmes onde tentam atravessar alguém pelo deserto do México para os EUA? Me senti num deles. E a missão era somente enviar comida e água de um bairro para outro da mesma cidade. Nosso “coiote” (guia que ajuda nas travessias dos filmes) era um amigo, conhecido jogador de futebol, que já circulava há três dias pelo local, ajudando a salvar pessoas ilhadas nas suas casas. Ele conhecia pessoas, sabia da logística, entendia do novo mapa hídrico da cidade.

De cara, uma decisão importante. De cinco pessoas, apenas três poderiam fazer o traslado.
Partiram ele, minha esposa e seu filho. Junto a eles, algumas cestas básicas e água, muita água. O barco contatado faria um determinado itinerário, que não compreendia todo o trajeto pretendido, no que já se sabia que teriam que fazer algumas baldeações. Mas, como uma verdadeira operação de guerra, partiram sem hora para voltar.

Acabei ficando ali, no front, com outro amigo, esperando o retorno de nossa equipe. Enquanto aguardava, observei cada detalhe daquilo que estava acontecendo naquele ambiente desolador.

O “front” tinha duas entradas. Uma seguia para o fundo do centro, o outro era porta de acesso a outros bairros. Ali na margem, uma tenda recebia os animais resgatados. Moças atenciosas tratavam de receber, secar e examinar os pets que chegavam. Somente depois recebiam comida e água. A fome de alguns parecia ser grande. Mas a expressão de susto nos seus focinhos era comovente.

Em outra tenda, uma mesa grande armazenava garrafas d’água, sanduíches, bolachas e marmitas. Quem chegava do resgate pegava aquilo que fosse de seu agrado para sanar emergencialmente fome e sede.

A todo momento, barcos iam e vinham com pessoas e animais. Alguns partiam com água e comida. Havia um cordão de isolamento, para manter os curiosos afastados. E eram muitos! Alguns chegavam e demonstravam-se surpresos com a situação, pois tinham intenção de seguirem de carro para Novo Hamburgo. Mas não somente eles estavam ali. Familiares aflitos aguardavam o resgate de seus parentes. Quando eles chegavam, abraços, choros, festa..

Entre os voluntários, além dos barqueiros e pilotos, com suas roupas de mergulho, alguns portavam crachás improvisados, onde podia-se ler seus nomes escritos à caneta pincel e o setor onde atuavam. “Alimentos”, “pedidos”, “saúde”… Também havia policiais de várias forças. Dois civis, quatro brigadianos, um militar do exército. Uma caminhonete da Defesa Civil, funcionários da concessionária de energia elétrica, duas enfermeiras e muitas, mas muitas pessoas comuns.

Em algum momento, gritos no front de saída do centro. “Cadeiraaaaa!!!”, gritou um socorrista, correndo com água pelos joelhos, em direção a um barco que se aproximava. Pude observar que trazia uma senhora idosa e mais um casal. Na tenda do front, voluntários se mobilizaram correndo e partiram com uma cadeira de rodas até a margem. A senhora, aparentando mais de 80 anos, foi retirada no colo e levada até a cadeira de rodas. Na tenda, recebeu o carinho das moças, que lhe ofereceram o “buffet” da mesa posta.

Ao lado, em uma tenda destinada à saúde, enfermeiras faziam a medição de pressão. Mas um senhor, aparentando estar muito debilitado, me chamou a atenção. Ele tinha sondas instaladas no seu corpo, não parecia ter consciência de tudo que estava acontecendo. Eu percebi que uma enfermeira estava impaciente, andando de um lado ao outro, mexendo no celular. Parecia tentar ligar para alguém. De fato, ela tentava e não conseguia. Ao me ver, solicitou meu aparelho para tentar ligar para um contato seu, na esperança de pedir uma ambulância para atender um paciente de risco. Imaginei ser o senhor aquele. Prontamente cedi meu celular e após algumas tentativas, o pedido foi feito e minutos depois o socorro chegou.

Entre cenas comoventes de apreensão, a chegada de famílias que encontravam parentes à margem era comovente. Sensação de alívio, de felicidade por ver o sorriso e os abraços, alguns regados a lágrimas. Alguns não tinham ninguém à espera, mas outros traziam consigo seus motivos de alegria. Vi várias pessoas que, ao chegarem em terra firme, beijavam carinhosamente seus pets, como dizendo: estamos a salvo!

Passadas algumas horas, finalmente recebo uma mensagem no precário whatsapp. Era minha esposa, avisando que já estavam retornando. Em uma série de mensagens que haviam represadas por conta da falta de sinal, ela detalhava a operação por qual estava passando.

Ao partir do front, de barco, seguiram até um prédio onde o barqueiro precisava salvar duas pessoas. Lá, fizeram o resgate delas, que desceram pela janela de um segundo andar, caminharam por sobre um toldo e subiram à bordo. Foram todos deixados no front da BR. Aquele barco partiu em outra incursão ao centro, enquanto minha equipe planejava nova carona. Conseguiram um carro que partiu pelas águas rasas. Um Fiat uno, precário, sem a escada por cima, mas muito resistente e cujo motorista estava incansável em ajudar. Fez o trabalho recusado pela viatura da PRF, cujo policial dissera ter receio de colocá-la na água e perder o equipamento. Mas uno é uno e boa vontade é algo que todos os voluntários têm de sobra. Chegaram, enfim, à margem oposta. Caminharam, procuraram, encontraram. Inclusive, em um alojamento próximo, minha esposa encontrou seu pai e madrasta, com quem tinha perdido o contato fazia dias. Estavam bem! Sua casa foi coberta até o telhado, mas receberam acolhimento e retribuíram com ajuda na cozinha e triagem de roupas, para atender a outros que também precisavam.

Os mantimentos chegaram ao destino. O retorno foi feito em escalas mais fragmentadas, mas três horas depois da partida, chegaram de volta ao meu reencontro. Nos seus rostos, cara de cansaço, olhos vermelhos. Não perguntei, mas o choro deve ter sido constante ao ver cenas que os olhos de quem ali nasceu jamais pensaram em assistir de perto.

Fizemos o trajeto de volta a Gravataí calados. O coração não dizia nada, mas por dentro sangrava. E é certo que essa cicatriz ficará para sempre marcada em cada um de nós.”

Relato pessoal do Jornalista Lelê Pereira – @reporterlelepereira

Adicionar aos favoritos o Link permanente.

Os comentários estão desativados.