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O caso da rilpivirina

Em meio à crise sanitária global por Covid-19, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em maio de 2021, pela inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 40 da Lei de Propriedade Industrial (Lei 9.279/1996). Este dispositivo previa a extensão automática e indeterminada do prazo das patentes após o procedimento administrativo do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). O Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI), coordenado pela Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA), atuou ativamente no processo e denunciou, em inúmeras ocasiões, que o parágrafo único do artigo 40 limitou severamente o acesso da população brasileira a medicamentos para diversas enfermidades.

O STF decidiu pela coletividade e em defesa do direito fundamental à saúde. Neste sentido, o ministro Dias Toffoli ressaltou que o “prolongamento indevido dos prazos de vigência de patentes reveste-se de caráter injusto e inconstitucional, por privilegiar o interesse particular em detrimento da coletividade, impactando de forma extrema a prestação de serviços de saúde pública no país e, consequentemente, contrariando o direito constitucional à saúde”.

Após esta decisão histórica em defesa do Sistema Único de Saúde (SUS) e do direito à saúde para toda a população brasileira, as transnacionais farmacêuticas, inconformadas com o fim do paraíso dos monopólios, buscaram o Judiciário para burlar a decisão da ADI 5529 e instituir um mecanismo alienígena conhecido como Patent Term Adjustment (PTA). Há cerca de 40 ações no Judiciário que buscam o prolongamento do prazo da patente através do PTA. Dentre essas ações destaca-se uma relacionada à rilpivirina, para exemplificar parte das estratégias utilizadas pelas transnacionais farmacêuticas no sistema de propriedade intelectual, bem como seus efeitos perversos na saúde pública.

A rilpivirina pertence à classe de medicamentos conhecidos como inibidores não nucleosídeos da transcriptase reversa (INNTR) do vírus da imunodeficiência humana do tipo 1 (HIV-1) e, por isso, é utilizado no tratamento do HIV. Trata-se, segundo a literatura, de um medicamento mais bem tolerado, menos tóxico e mais durável que o efavirenz, quando utilizado como parte do regime antirretroviral de primeira linha.

A rilpivirina existe no mercado internacional desde 2011, quando foi aprovada pela Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (FDA) e pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA), sendo, desde então, comercializada no exterior em combinação com outros antirretrovirais para pacientes adultos. No entanto, este medicamento nunca foi registrado e nem distribuído no Brasil.

Apesar da farmacêutica Janssen-Cilag ter depositado vários pedidos de patente relacionados a esse medicamento no INPI, a empresa nunca demandou à Anvisa o registro sanitário do produto Edulrant®, nome comercial da rilpivirina, o que sugere que não houve a intenção de comercializar o medicamento no Brasil.

Não há uma relação direta entre o depósito de pedidos de patente e o registro sanitário do medicamento. Contudo, a falta de registro pode barrar uma série de etapas na operacionalização do acesso ao medicamento: a avaliação de eficácia e segurança pela Anvisa; a análise de eficácia, segurança, efetividade, impacto social e econômico pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias ao SUS (Conitec); e a aquisição e distribuição pelo SUS.

A Janssen impediu, por meio do depósito de pedidos de patente, que novos competidores entrassem no mercado, que laboratórios brasileiros pudessem desenvolver, produzir, distribuir e, até mesmo, importar a rilpivirina. O que houve foi o bloqueio da concorrência no mercado e o controle sobre a distribuição do medicamento – e de suas combinações – em território brasileiro, garantido ao longo de 20 anos pelo monopólio patentário.

A rilpivirina, que não é um medicamento novo, atualmente apresenta-se em novas combinações promissoras com outros princípios ativos utilizados no combate ao HIV/Aids, a exemplo do Juluca® e do Cabenuva®. A terapia antirretroviral tornou a infecção pelo vírus da imunodeficiência humana uma condição controlável e garantiu a qualidade de vida das pessoas vivendo com HIV, mas os desafios da terapia oral diária – como o número de pílulas e o estigma – podem reduzir a adesão e a efetividade do tratamento.

Estas combinações citadas tendem a reduzir a magnitude destes desafios. O Juluca® (combinação entre dolutegravir e rilpivirina) é um medicamento de único comprimido, tomado uma vez ao dia junto a uma refeição. Por sua vez, o Cabenuva® (combinação entre cabotegravir e rilpivirina) é administrado em injeções intramusculares a cada dois meses. Essas combinações oferecem novas abordagens de tratamento para manter a supressão viral do HIV. Embora ambos os medicamentos ofereçam novas opções de tratamento para as pessoas que vivem com HIV, seus preços ainda são proibitivos.

Na ação judicial, a Janssen alegou ter sofrido um dano — que nunca existiu — relacionado à exploração comercial da rilpivirina, em virtude de uma suposta demora na análise do pedido de patente pelo INPI. Entretanto, a comercialização do medicamento rilpivirina em nada dependia da concessão do monopólio pleiteado, e poderia ter sido comercializado durante todo o período de tramitação do pedido de patente.

Considerando que o monopólio patentário se constitui por um período de proteção retroativa (entre a data de depósito do pedido de patente e a concessão da patente) e por um período de proteção prospectiva (entre a concessão da patente e a sua extinção), a Janssen pôde explorar o objeto de sua patente durante todo o período de vigência de seu privilégio. Isto é, antes e depois da concessão do monopólio patentário.

Em evidente contraste com os benefícios do surgimento de novos medicamentos para a saúde pública, a extensão da patente requerida tem como objetivo celebrar acordos comerciais mais lucrativos, impedir o surgimento de novas combinações, bloquear a concorrência e manter os preços desses medicamentos em níveis abusivos. A tentativa de estender o prazo da patente sobre a rilpivirina trata-se de litigância de má-fé — uma conduta desleal e abusiva que deve ser imediatamente rechaçada pelo Judiciário.

É importante destacar que a empresa não é a única farmacêutica que se utiliza desse recurso. Outras companhias do setor também têm recorrido ao Judiciário para se insurgir contra a decisão do STF na ADI 5529 e instituir o PTA. Diante desse cenário, a ABIA e outras 18 organizações da sociedade civil organizada, que compõem o GTPI, consultaram o respeitável ministro Eros Grau, ex-integrante do STF, sobre a matéria.

Em parecer pro bono, o ministro Eros Grau apontou a existência de, pelo menos, três abusos cometidos pelos agentes que buscam estender o prazo de vigência das patentes por meio do Judiciário. São eles: (i) “A proposição de ações construídas ao arrepio da letra do artigo 40 da LPI caracterizam abuso de direito de patente”; (ii) “A proposição de ações que almejam compensação na falta de comprovação de dano caracteriza abuso de direito de petição”; e (iii) “A inércia das Autoras diante do alegado atraso da Autarquia na condução dos exames técnicos de seus pedidos de patente, caracterizada pelo não exercício do direito de reclamar e exigir a condução eficiente dos processos administrativos em questão, e os pedidos judiciais de compensação subsequentes, calcados na ineficiência do INPI na condução do processo administrativo, caracterizam abuso do sistema de patente” (grifos nossos).

Nesse sentido, ainda é preciso destacar que a extensão indevida do prazo de vigência da patente sobre a rilpivirina seria flagrantemente inconstitucional, violando, entre outros dispositivos constitucionais, o direito fundamental à saúde e à vida de milhões de brasileiros e brasileiras, uma vez que (i) fragilizaria o orçamento do Estado; (ii) prejudicaria a sustentabilidade das políticas públicas de saúde; e (iii) causaria danos irreparáveis à política de concorrência no setor farmacêutico. De maneira mais ampla, a estratégia executada pela Janssen prejudica todas as pessoas vivendo com HIV/Aids, que nos últimos dez anos viram apenas duas atualizações dos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT), uma em 2013 e a última em 2018.

Este artigo mostrou a situação preocupante da rilpivirina e alerta para o fato de que essa mesma situação pode se repetir com outros medicamentos. É crucial que as questões de patentes, acesso a medicamentos e regulação do mercado farmacêutico entrem em discussão pública de forma mais intensa e ampla. É necessário disseminar essas informações e agir politicamente para garantir medidas efetivas que assegurem o direito à saúde para todas as pessoas.

Neste sentido, a ABIA e o GTPI continuarão atuando na defesa do interesse público, buscando reduzir o impacto das patentes na disponibilidade de medicamentos para a população. Esperamos, assim, contribuir para um ambiente mais justo e equitativo no acesso a medicamentos e no fortalecimento do direito à saúde.

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