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A falácia da atração de inovação farmacêutica pelo data protection

A dinâmica inovativa da indústria farmacêutica inclui a realização de uma série de testes clínicos para garantir a segurança, eficácia e qualidade terapêutica de um medicamento, em um processo que tende a ser moroso e custoso. Em função disso, as empresas farmacêuticas estrangeiras reivindicam a proteção dos dados gerados por esses testes clínicos, principalmente aqueles que não são divulgados, sob a forma de um tipo específico de propriedade intelectual conhecido como exclusividade de dados (data exclusivity ou data protection).

É importante ressaltar que as regras internacionais, que regulam a proteção aos direitos de propriedade intelectual e definem parâmetros mínimos obrigatórios para os países signatários do Acordo sobre Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (TRIPS), não obrigam esse tipo de proteção. Dessa forma, os países signatários devem proteger os dados de testes clínicos registrados sobre novas entidades químicas e biológicas apenas contra divulgação e uso comercial desleal. Com isso, as autoridades regulatórias podem se basear nesses dados para comparação dos resultados dos testes exigidos para o registro do medicamento genérico, sendo impedidas de tornar público ou divulgar a terceiros os dados apresentados pelas empresas dos medicamentos de referência.

No Brasil, a Lei de Genéricos (Lei 9.787/1999) e demais Resoluções da Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) definem os testes de biodisponibilidade e de bioequivalência como exigência para definição da intercambialidade do genérico com o medicamento de referência. Porém, tais testes não dependem dos testes clínicos já depositados, servindo apenas para a avaliação pela Anvisa dos resultados dos novos testes apresentados para obtenção de registro do genérico.

Assim, como todo país signatário do TRIPS, o Brasil cumpre os requisitos mínimos estabelecidos internacionalmente ao determinar em sua legislação que é crime de concorrência desleal a divulgação de dados submetidos à Anvisa para aprovação de comercialização de medicamentos. Tais dados são sigilosos, confidenciais e só podem ser acessados por determinação judicial.

Entretanto, as empresas farmacêuticas estrangeiras afirmam que a ausência de um período de exclusividade de dados de teste no marco regulatório brasileiro produz maior hesitação para a entrada de medicamentos inovadores no mercado. Por isso, reivindicam a introdução desse tipo de proteção na legislação brasileira, com a replicação de regras adotadas nos Estados Unidos, União Europeia e outros países que aderiram à essa norma TRIPS-plus por meio de acordos de livre comércio. Em geral, a demanda varia entre períodos de 5 a 8 anos de exclusividade para produtos químicos e de até 12 anos para produtos biológicos.

No entanto, tais argumentos são rechaçados por um estudo contratado pelo governo federal, com apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), e coordenado pelo Grupo de Economia da Inovação do Instituto de Economia da UFRJ. O estudo, divulgado em outubro de 2021, avaliou o impacto dos mecanismos de exclusividade de mercado e de exclusividade de uso de dados de testes clínicos[1] sobre a disponibilidade de medicamentos com inovação no mercado brasileiro.

Para testar o argumento das empresas estrangeiras de que a exclusividade de dados aceleraria a entrada de inovações farmacêuticas no Brasil, foram analisados os potenciais efeitos para medicamentos novos – primeiro insumo farmacêutico ativo (IFA) registrado no país – e inovadores – medicamentos que já tem IFA registrado no Brasil. Para o primeiro caso, comparou-se a diferença de tempo no registro de medicamentos originalmente desenvolvimentos nos EUA com o tempo de seu registro como medicamento novo no Brasil e em dois países que aderiram ao mecanismo de exclusividade de dados (Canadá e México). Para o segundo caso, estimou-se, a partir de cinco cenários de exclusividade de mercado e de dados baseados nas legislações nacionais e nas regras vigentes em acordos de livre comércio, os efeitos sobre o tempo médio de registro de medicamentos inovadores no mercado brasileiro.

Entre 2010 e 2019, o Brasil registrou 77 princípios ativos novos de medicamentos para aparelho digestivo e metabolismo (classe A), agentes antineoplásicos e imunomoduladores (classe L) e medicamentos para o sistema nervoso (classe N). Enquanto isso, no México, país com nível de desenvolvimento próximo ao brasileiro, foram registrados apenas 36 novos princípios ativos no mesmo período e nessas mesmas classes, demonstrando que a existência de regra de exclusividades de dados não atraiu mais medicamentos para o mercado mexicano em comparação com o brasileiro.

Notou-se também pouca diferença em relação ao tempo de entrada desses medicamentos no Brasil em comparação aos dois países com exclusividade de dados. Em média, o registro dos 77 medicamentos mencionados no Brasil ocorreu quatro anos após o seu registro original nos EUA, enquanto no Canadá e no México, o tempo médio foi de três e seis anos. Analisando somente a classe terapêutica A, houve maior celeridade na entrada de medicamentos no Brasil (7 anos), frente a Canadá (13 anos) e México (19 anos), enquanto para as outras duas classes as diferenças não foram significativas.

Assim, conclui-se que não há uma correlação direta entre a adoção da exclusividade de dados no país e o tempo de entrada ou a maior disponibilidade de medicamentos novos no mercado, o que coloca em xeque o argumento apresentado pelas empresas farmacêuticas estrangeiras para pressionar o governo brasileiro a adotar um regime de proteção semelhante.

Tal resultado foi corroborado em entrevistas com empresas farmacêuticas nacionais e estrangeiras atuantes no Brasil que apontaram o tamanho do mercado e questões relacionadas ao sistema de atenção à saúde como os principais fatores que influenciam a decisão de introduzir inovações no mercado farmacêutico. Dado o tamanho de sua população e o poder de compra do Estado pela política de assistência farmacêutica do SUS, o Brasil é um mercado economicamente atrativo.

No caso dos medicamentos inovadores, a depender do cenário de exclusividade de mercado e dados concedidos, o tempo médio de entrada no mercado brasileiro de medicamentos inovadores seria ampliado de 7 a 35 anos para 12 a 41 anos, de acordo com a classe terapêutica. A alternativa que as empresas concorrentes teriam para reduzir o atraso na entrada de medicamentos inovadores no mercado levaria ao aumento dos custos de desenvolvimento dessas inovações, pois seria necessária a repetição dos testes clínicos ou o pagamento pelo acesso a seus resultados[2].

Esses efeitos negativos seriam particularmente sentidos pelas farmacêuticas nacionais, porque ampliariam a reserva de mercado para as empresas farmacêuticas estrangeiras no segmento de medicamentos inovadores, do qual já são maioria. Conclui-se, assim, que a exclusividade de dados teria um efeito de ampliar ainda mais a participação das empresas estrangeiras nos registos de medicamentos novos e inovadores, e também bloquear o recente avanço das farmacêuticas nacionais na geração de inovação incremental.

Em síntese, as evidências levantadas pelo estudo demonstram que os efeitos da introdução da exclusividade de dados seriam prejudiciais para a sociedade brasileira e a indústria farmacêutica nacional. Além disso, tal mecanismo não seria estímulo suficiente para ampliar à geração de inovação no país ou para acelerar a introdução inovações farmacêuticas no mercado brasileiro.


[1] A exclusividade de dados proíbe a autoridade sanitária de receber e avaliar pedidos de comercialização de medicamento que se apoiem em dados de teste de um medicamento de referência. A exclusividade de mercado significa que a empresa de genéricos não será permitida a comercialização do medicamento enquanto perdurar a exclusividade.

[2] As empresas detentoras dos dados poderiam comercializar o direito de exclusividade, o que poderia evitar a duplicação dos esforços, mas que elevaria os custos de registro.

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