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Dois pesos e duas medidas

Nuno VasconcelosDaniel Castro Branco/Agência O Dia

Passadas duas semanas do início dos conflitos na Faixa de Gaza, a imprensa brasileira parece nem se lembrar que a onda de violência foi iniciada por um ataque covarde de terroristas do Hamas. Eles invadiram o território israelense e se puseram a matar jovens, estuprar mulheres, degolar crianças e sequestrar pessoas indefesas. Nada disso parece ter importância para os que, agora, parecem empenhados em responsabilizar as vítimas pela tragédia.

São raras as reportagens sobre o sofrimento dos atingidos pelos bombardeios feitos pelas Forças de Defesa de Israel contra alvos na Faixa de Gaza que levam em conta a crueldade que deu início à guerra. A maioria prefere ignorar que a reação israelense tem por objetivo neutralizar as bases dos terroristas que usam a população civil palestina como escudo para seus atos criminosos.

Ninguém pode negar o sofrimento do povo palestino — mas, para reconhecê-lo, não é necessário ignorar a dor das vítimas do terrorismo. Diante disso, algumas perguntas não podem deixar de ser feitas. Será que a libertação na sexta-feira passada de duas mulheres que tinham sido arrancadas de sua casa e arrastadas à força para o cativeiro deve ser apresentada, como vem sendo, como um “gesto humanitário” dos criminosos que as levaram? Por que não se exige dos terroristas a libertação imediata dos mais de 200 reféns inocentes como um passo necessário para um cessar-fogo imediato?

A reação ao sofrimento dos reféns reflete as posições de cada um de nós em relação a um conflito diante do qual — como foi dito na semana passada — não admite neutralidade. Quem se indigna com sua situação está de um lado. Do outro lado estão os que consideram normal que terroristas invadam casas, estuprem mulheres, degolem crianças e sequestrem pessoas indefesas e acham que essa agressão não deve ser retaliada. Como tudo que acontece no Oriente Médio, essa guerra tem proporcionado oportunidades para que algumas pessoas se escondam atrás de uma suposta imparcialidade para justificar o preconceito que nutrem contra o Estado de Israel e o povo judeu.

Dias atrás, um funcionário do governo brasileiro, o então presidente da Empresa Brasileira de Comunicação Hélio Doyle, republicou em suas redes sociais uma postagem em que dizia: “Não precisa ser sionista para apoiar Israel. Ser um idiota é o bastante”. A postagem incomodou o Planalto. Naquele momento, o Brasil, que ocupa a presidência rotativa do Conselho de Segurança da ONU, buscava mediar uma solução para o conflito.

Demitido, Doyle tentou negar o antissemitismo de sua postagem ao alegar a intenção de defender “o direito de os palestinos terem seu Estado, ao lado de Israel”. Qualquer pessoa de bom senso defende esse direito sem a necessidade de sair chamando os outros de idiotas. Quem não o defende é o Hamas, que não quer saber de coexistência de dois estados na região. Seu maior propósito é a destruição de Israel.

OUTRA FACE — A questão humanitária na região de Gaza é seríssima. Ninguém com um mínimo de consciência pode ficar indiferente diante das cenas de destruição exibidas todos os dias pela TV. A questão é que, para se exigir de Israel que contenha sua reação diante da brutalidade que sofreu, seria necessário, com a mesma veemência, exigir que os terroristas de grupos como o Hamas, o Hezbollah, a Jihad Islâmica e alguns outros deixassem de cometer seus ataques covardes. Será que eles aceitam?

A posição dos “analistas” que falam sobre conflito, no entanto, é clara. Diante de qualquer incidente que acontece por lá, primeiro apontam o dedo na direção de Israel; depois, procuram saber o que aconteceu de verdade. Na terça-feira passada, um foguete atingiu a área do hospital Ahli-Arab, em Gaza, e matou muitas pessoas. Bastou que a explosão fosse anunciada para que a imprensa alardeasse, com base apenas em informações do Hamas, que Israel havia atacado o hospital e matado 500 pessoas.

Poucas horas depois, ficou claro que o número de mortos não foi tão grande e que o disparo partiu dos próprios terroristas. Em visita a Israel, o presidente dos Estados Unidos Joe Biden, apoiado em imagens captadas pelo sistema de monitoramento que seu país mantém sobre a região, disse que o ataque “foi feito pelo outro lado”. Para muita gente, porém, a versão passada por terroristas, que usam a mentira e a desinformação como parte de sua estratégia, continuou sendo a verdadeira. É como se Israel fosse obrigado a baixar a cabeça e oferecer a outra face diante de cada tapa que recebe de um inimigo que não tem coragem de mostrar a própria cara.

ESFORÇO DIPLOMÁTICO — Aliás, nesta altura, é bom fazer uma observação: a postura do governo brasileiro em relação ao conflito merece reconhecimento e elogios. Mesmo porque, para defendê-la, muitos integrantes do governo tiveram que passar por cima de suas próprias convicções. Embora existam razões históricas que confirmem as afinidades de Brasília com o lado árabe, e ainda que o próprio partido da situação, o PT, não consiga esconder seu apoio às ações dos terroristas, o governo assumiu uma posição de protagonista na busca de uma tentativa negociada para a guerra e se empenhou em conseguir um acordo que garantisse o fim das hostilidades.

Tomara que a paz venha logo! Se ela for obtida com a ajuda do Brasil, melhor ainda. Mas não se pode, em hipótese alguma, fechar os olhos para a agressão covarde que deu início aos combates. Há um princípio que vale para esta como que vale para todas as outras guerras: é possível dizer como ela começou, mas ninguém sabe como terminará. Isso vale, também, para a outra guerra que acontece no mundo e que foi iniciada com a invasão da Ucrânia pela Rússia. Muita gente imaginou no primeiro momento que as hordas de Vladimir Putin marchariam Ucrânia adentro sem enfrentar uma resistência à altura, derrubariam o presidente Volodymyr Zelensky e, dali a algumas semanas, dariam o conflito por encerrado. Ninguém pareceu levar a sério a determinação de Zelensky para resistir à agressão nem a disposição do Ocidente em ajudá-lo. E o conflito já se estende por dois anos sem que ninguém possa dizer como terminará.

DECISÕES ERRADAS — O curioso é que, por mais desgraças que causem, agressores como Putin ou como os terroristas do Hamas são os primeiros a se fazer de vítimas e a culpar os que reagem a seus ataques pela violência que, mais cedo ou mais tarde, se volta contra seu próprio povo. No caso do Oriente Médio, Putin teve até a ousadia de fazer uma proposta de paz para o conflito, algo que, partindo de quem partiu, está mais para uma piada de mau gosto do que para um gesto a ser levado a sério.

Mas a mania de lavar as mãos diante das tragédias desencadeadas pelas escolhas que fazem e pelas decisões que tomam tem sido uma rotina para os políticos ao longo da história — e isso vale tanto para situações de guerra quanto para momentos de paz. Nenhum político assume as consequências desastrosas de suas escolhas equivocadas nem de suas decisões erradas. Pior: muitos deles vendem a ideia de que problemas complexos podem ser resolvidos a partir de providências simples e, assim, vendem a ideia de que é possível combater o sintoma sem curar a causa da doença.

Um exemplo disso está acontecendo Argentina. O país está a um passo de escolher um novo presidente da República sem que nenhum dos candidatos tenha apresentado uma proposta consistente para resolver os problemas que o colocaram numa rota de autodestruição que parece sem volta. Por culpa das ilusões vendidas por políticos que oferecem o céu e entregam o inferno, a Argentina, desde a primeira metade do Século 20 e ao longo do Século 21, deixou de ser um dos mais prósperos do mundo para se tornar um dos mais problemáticos. E tornou-se um caso único no mundo de país que era rico e, de erro em erro, ficou pobre.

ARMADILHA POPULISTA — Os problemas que levaram a Argentina ao fracasso, como registra a história, se iniciaram antes de Juan Domingo Perón assumir pela primeira vez a presidência, em 1946. Mas certamente foi sob seu governo que as finanças públicas do país saíram definitivamente do controle e que foram adotadas as medidas populistas que a Argentina, por mais rica que fosse, não tinha condições de sustentar.

Perón construiu sua popularidade sobre os benefícios que distribuiu e que, no primeiro momento, proporcionaram uma sensação de bem-estar e de segurança social que fizeram dele uma espécie de semideus. O ídolo, porém, tinha os pés de barro. Sob a condução de Perón, a Argentina mergulhou, a partir dos anos 1950, numa crise econômica profunda, que elevou a inflação às alturas, destruiu as reservas cambiais e deu início ao processo de erosão das finanças públicas do qual jamais conseguiu se libertar. A armadilha populista armada por Perón prende o país até os dias de hoje.

É preciso reconhecer, é claro, que Perón não foi o único responsável pelas decisões que arrastaram a Argentina para a ruína. Alguns de seus sucessores, é verdade, ajudaram a aprofundar o buraco que ele começou a cavar. E assim, de governo em governo, tendo ao longo de sua trajetória experimentado alguns períodos de ditadura militar, a Argentina foi mergulhando em sua crise e acreditando em mentiras. A ponto de, em 2019, eleger Alberto Fernández para a presidência.

A rigor, o único feito de Fernández em seus quatro anos de mandato foi conseguir ser ainda mais inepto do que sua antecessora Cristina Kirchner. Andando em círculos e culpando os outros pelos seus erros, ele parece ter achado a tábua de salvação no final do ano passado. A vitória de seu amigo pessoal Lula para a presidência do Brasil significou para Fernández as portas da esperança da qual ele esperava encontrar fôlego para chegar ao fim do mandato.

ROMPIMENTO UNILATERAL — O populismo de Fernández empurrou a Argentina para uma inflação que beira os 150% ao ano. A taxa de câmbio deu um salto espetacular no último ano, passando da cotação de 277 pesos por um dólar em setembro de 2022 para 720 pesos por dólar no final de setembro deste ano. O quadro é tão caótico que, embora tivesse esse direito, Fernández fugiu da raia e não quis disputar a reeleição. Hoje acontece o primeiro turno das eleições que apontarão seu sucessor. Se houver segundo turno, ele será disputado no dia 19 de novembro.

Três nomes lideram a disputa. São eles Javier Milei, um economista de direita que, agindo como uma espécie de franco-atirador, surpreendeu ao inscrever seu nome entre os favoritos; Patrícia Bullrich, que representa o centro liderado pelo ex-presidente Mauricio Macri e Sergio Massa, o candidato governista e ministro da Economia do atual governo. Qualquer um dos três que venha a assumir a presidência no próximo dia 10 de dezembro, uma coisa é certa: o resultado terá repercussão sobre o Brasil.

Milei afirmou que, caso seja eleito, romperá relações com o Brasil. Age, nesse caso, como aqueles filhinhos mimados que, quando a mesada se torna insuficiente para bancar suas extravagâncias, fazem birra e ameaçam ir embora de casa para ver se conseguem comover o pai a lhe dar mais dinheiro. Ele promete, também, acabar com o Banco Central e tomar outras medidas de difícil implementação. Nada do que Milei propõe parece fazer sentido e o único efeito de sua eleição, caso se confirme nas urnas, será o de substituir o populismo de esquerda que domina o país há décadas pelo populismo de direita.

A candidata Patrícia Bullrich, apoiada pelo ex-presidente Mauricio Macri, não iria tão longe. Caso vença a corrida, uma possibilidade considerada remota, manteria relações civilizadas com o Brasil. A diferença de orientação política de seu eventual governo com o do presidente Lula, no entanto, tenderia a esfriar as relações entre os dois países: não é segredo que, embora jamais assumam isso em público, os governos do PT orientam seus movimentos diplomáticos e suas alianças comerciais pelas afinidades ideológicas com os eventuais parceiros. Finalmente, o candidato Massa, caso vença, fará o que estiver a seu alcance para estreitar as relações com Brasília e ampliar o apoio que Fernandez já vem recebendo do governo brasileiro. Isso mesmo. Para o candidato peronista, o Brasil é a porta de saída para a crise que ele, na condição de ministro da  Economia de Fernández, contribuiu para tornar a mais grave da história argentina.

VIDA CURTA — A essa altura, deve ter alguém se perguntando: afinal, qual é a relação entre a guerra no Oriente Médio e as eleições da Argentina? Existem, é claro, vários pontos de interseção entre as duas situações, mas o que interessa neste momento é mostrar que, a esta altura do campeonato, os dois problemas vêm sendo discutidos sem que se procure resolver aquilo que os gerou.

Se a vitória na Argentina for de Milei, que leva o discurso liberal ao extremo, mas nitidamente não tem condições de entregar o que promete, a culpa não será do povo argentino, mas da falta de alternativas sensatas para solucionar a crise. Qualquer pessoa que acompanhe a situação da Argentina, ainda que à distância, sabe que o povo chegou ao limite de sua paciência com políticos populistas que fizeram do país refém das lideranças sindicais e dos políticos que, para sustentar uma máquina pública inchada, ineficiente e, em muitos casos, corrupta, impõem à população sacrifícios superiores aos que ela consegue suportar.

No Oriente Médio, por sua vez, uma paz sustentada na renúncia de Israel ao direito de se defender e de reagir aos ataques covardes que sofre está condenada a ter vida curta. Ela durará apenas até o momento em que o próximo ataque terrorista, que certamente virá, for desferido da Faixa de Gaza, da Cisjordânia ou do território libanês.

Em um caso e no outro, nenhuma solução definitiva será encontrada enquanto as causas do problema não forem atacadas de frente — e isso, evidentemente, requer sacrifícios. Sem um governo que leve a sério a situação fiscal do país e que faça tudo que estiver a seu alcance para colocar as finanças públicas em ordem, a inflação nunca será controlada e a Argentina nunca voltará a ter prosperidade. Sem que se ataque as causas do problema, o povo continuará, a cada quatro anos, condenado a acreditar em promessas vazias, que dificilmente serão cumpridas.

Posta ao lado da Argentina, a situação no Oriente Médio parece e é muito mais grave. Enquanto o problema não for resolvido, a vida de casa pessoa que vive na Palestina ou em Israel estará sob ameaça permanente. Enquanto o direito de Israel à existência não for respeitado e enquanto não houver um Estado palestino legítimo e sujeito às regras de convivência aceitas pelo mundo inteiro, o povo continuará a pagar com a própria vida a conta pela falta de entendimento.

Enquanto houver quem apoie o terrorismo, ainda que de forma velada, e grupos como o Hamas não forem eliminados de uma vez por todas, ninguém poderá falar em paz. E mais: enquanto não forem feitos investimentos que garantam ao povo palestino condições de vida e bem-estar parecidas com as do lado israelense, a paz estará sempre sob ameaça. Como se vê, não existem soluções fáceis para problemas complexos. Mas se ninguém encarar o problema a partir de suas causas, não for dado o primeiro passo no sentido de resolvê-lo, tudo ficará como está. Ou melhor, tudo corre o risco de ficar ainda pior.

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