• New Page 1

    RSSFacebookYouTubeInstagramTwitterYouTubeYouTubeYouTubeYouTubeYouTubeYouTubeYouTube  

Uso de imagens de Yanomami pela Cartier leva os defensores indígenas a alegar ‘hipocrisia’


Empresa diz que não compra ouro extraído ilegalmente, mas se recusou a comentar o apelo dos Yanomami para que as pessoas parassem de comprar joias de ouro. Essa página, que foi removida do site da Cartier, mostra a imagem de quadro crianças Yanomami brincando em um campo verde, enquanto no topo da página há links para comprar joias de alta qualidade. A marca francesa de joias de luxo disse que está trabalhando para promover a cultura dos povos indígenas e proteger a floresta tropical, mas o projeto que o site descreveu nunca aconteceu. A Cartier retirou a página do ar quando contatada pela Associated Press.
Reprodução/ Cartier via AP
Até dois meses atrás, o site da joalheria Cartier mostrava crianças Yanomami brincando em um campo verde. A marca francesa de luxo diz que está trabalhando para promover a cultura dos povos indígenas e proteger a floresta amazônica onde vivem, um vasto território que abrange Brasil e Venezuela.
Mas o projeto que o site descrevia protegendo a Amazônia nunca aconteceu. E a Cartier publicou a foto sem a aprovação da liderança Yanomami, o que viola as crenças de um povo que vivia em isolamento quase total até ser contatado por forasteiros na década de 1970.
Alguns dos indígenas e seus defensores elogiam a promoção da Cartier das causas Yanomami. No entanto, a publicidade de uma das maiores joalherias do mundo com imagens de um povo indígena devastado pela mineração ilegal de ouro também sofre reclamações de “greenwashing”, quando uma corporação apoia uma causa ambiental apenas para promover sua própria imagem.
“Como uma joalheria de ouro, contra a qual nós Yanomami somos contra, pode usar a imagem dos Yanomami?” perguntou Júnior Hekurari, integrante do grupo indígena e chefe do conselho de saúde Yanomami.
Doenças, assassinatos e prostituição, alimentados por drogas e álcool importados por milhares de garimpeiros ilegais, devastaram a vida tradicional dos indígenas da região, e 570 crianças Yanomami morreram de desnutrição, diarreia e malária entre 2019 e 2022, segundo estatísticas brasileiras. O mercúrio venenoso usado na mineração ilegal causa defeitos congênitos e devasta ecossistemas.
Helicópteros são visíveis em um campo ilegal durante uma operação para combater a mineração ilegal no território Yanomami em Roraima.
Edmar Barros/ AP Photo
A Cartier diz que não compra ouro extraído ilegalmente, mas os líderes Yanomami recomendam que as pessoas não comprem joias de ouro, independentemente de sua origem, porque a demanda pelo metal precioso aumenta os preços do ouro e atrai mineradores para seu território.
A Cartier e outras marcas de joias que fazem parte do conglomerado suíço Richemont tiveram vendas combinadas de 11 bilhões de euros (US$ 11,7 bilhões) no ano fiscal encerrado em 31 de março de 2022, de acordo com seu relatório anual. Algumas das peças anunciadas em seu site nos Estados Unidos custam até US$ 341 mil.
A conexão da Cartier com os cerca de 40 mil Yanomami remonta a 20 anos, principalmente por meio da Fondation Cartier, uma filantropia corporativa criada e financiada pela empresa em 1984. No passado, poucos Yanomami ou seus defensores criticaram publicamente a Cartier ou a fundação, mas um número crescente começou a expressar preocupação.
A fundação de Cartier patrocinou recentemente uma exposição exibindo fotografias de Yanomami, juntamente com obras de artistas indígenas, em um elegante centro de artes sem fins lucrativos em Manhattan. A exposição, anteriormente em Paris, foi elogiada por veículos que vão do “The New York Times” ao “Luxury Daily”, uma influente publicação do setor cuja manchete dizia: “A Fondation Cartier continua pressionando pela justiça indígena por meio do patrocínio da arte”.
Barbara Navarro, uma artista multimídia francesa, vê a situação com outros olhos, assim como vários outros artistas, inclusive alguns Yanomami.
Imagem fornecida por Barbara Navarro à AP mostra sua obra de arte retratando uma loja da Cartier, uma foto da destruição de uma mineração de ouro e um anel Cartier. Alguns defensores Yanomami estão acusando a joalheria francesa de associar sua imagem a uma tribo cuja liderança pediu ás pessoas que parassem de comprar joias de ouro.
Bárbara Navarro via AP
Na mostra multimídia “Pas de Cartier”, ou “Não Cartier”, na vila de Nemours, na França, Navarro e outros criticam a marca de luxo e a devastação causada por garimpeiros ilegais em uma exposição que inclui esculturas e desenhos. Em uma fotomontagem, uma grande mina de ouro cercada pela floresta amazônica é vista ao lado de uma loja Cartier.
“Os Yanomami estão pagando o preço com sua saúde e com suas próprias vidas pela implacável avidez por ouro de nossa sociedade”, disse Navarro. “Para a Cartier, o patrocínio aos Yanomami representa uma oportunidade de polir sua marca.”
Para muitos grupos indígenas, uma corporação ou filantropia usando uma foto deles requer permissão formal. A foto das crianças no site violou o direito dos Yanomami ao consentimento prévio, livre e informado, segundo o Conselho Indígena de Roraima, organização de base, citando a Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho, assinada pelo Brasil.
Hekurari disse que seu pessoal precisa de cooperação internacional, mas sua organização nunca aceitaria dinheiro de uma joalheria.
Em suas viagens pelo território Yanomami, uma área do tamanho de Portugal, o líder Yanomami encontrou dezenas de crianças esqueléticas em comunidades sitiadas por milhares de garimpeiros ilegais. Em março, sua organização, Urihi, lançou uma campanha online para conscientizar contra o comércio de ouro, e em um vídeo o líder Yanomami pede aos vencedores do Oscar que substituam as famosas estatuetas folheadas a ouro por figuras de madeira de Omama, uma entidade mítica.
“Quando alguém compra ouro em uma joalheria, está financiando mais invasões para destruir terras indígenas”, disse. “Não se trata apenas de extrair ouro. É uma questão de colher vidas.”
A Cartier se recusou a comentar o apelo dos Yanomami para que as pessoas parassem de comprar joias de ouro, mas, quando contatada pela Associated Press no final de março, a Cartier removeu a foto e a descrição do projeto.
Os recursos foram destinados a um projeto de preservação florestal, mas acabaram sendo usados para adquirir equipamentos médicos para combater a Covid-19 entre os Yanomami, informou a empresa. Uma doação no valor de US$ 74,2 mil foi feita em junho de 2020.
A descrição imprecisa “foi um descuido lamentável de nossa parte e foi abordada imediatamente após ser trazida ao nosso conhecimento”, disse a empresa.
Mas o problema é maior do que más escolhas de imagem, dizem muitos. Dário Kopenawa, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami, disse acreditar que “quem compra um anel de ouro faz parte do crime”.
A fachada da Cartier em um de seus prédios em Nova York.
Bebeto Matthews/ AP
A Cartier e sua fundação descrevem seu relacionamento como distante. Kopenawa também fez uma distinção entre a Cartier e sua fundação homônima. “Sabemos que a Cartier compra ouro em todo o mundo… mas a base é diferente. É outra coordenadora, outra filial. Apoia a proteção dos Yanomami”, afirmou.
Em fevereiro, Kopenawa chegou a voar para Nova York para participar da “Luta Yanomami – Arte e Ativismo na Amazônia”, exposição patrocinada pela Fondation Cartier com retratos fotográficos de indígenas ao lado de obras de artistas Yanomami. Kopenawa e outros Yanomami participaram da cerimônia de abertura, com o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, entre os convidados.
A Fondation Cartier tem uma coleção de quase 2 mil obras em sua sede em Paris. A fundação “é administrada por uma equipe independente e dedicada de profissionais do mundo da arte, encarregados de definir e implementar o programa artístico”, afirmou.
A fundação é liderada por Alain Dominique Perrin, uma figura proeminente na indústria do luxo que já atuou como principal executivo da Richemont. Em uma entrevista de 2018 para a revista de negócios francesa Entreprendre, ele enfatizou o valor corporativo do patrocínio das artes.
“Mecenato é semelhante a patrocínio: você ajuda um artista a expor, a ganhar reconhecimento e a se desenvolver, mas em troca a Fundação recebe elogios da imprensa, da mídia e das redes sociais, o que necessariamente beneficia a empresa”, disse.
A fundação “se tornará um ponto focal para a gestão e a imagem da marca Cartier”, escreveu Richemont em seu relatório anual de 1994, quando a sede foi inaugurada com 1,2 mil metros quadrados de espaço para exposições.
O antropólogo francês Bruce Albert está envolvido com os Yanomami há décadas, participando de uma campanha na década de 1990 que garantiu a demarcação de terras da tribo. Ele conectou a Fondation Cartier com os Yanomami em 2003. Naquele ano, Albert foi curador da primeira exposição de fotos e arte sobre os Yanomami patrocinada pela fundação.
No início de fevereiro, Albert participou da inauguração da exposição em Nova York, depois de trabalhar como consultor remunerado, ao lado de artistas Kopenawa e Yanomami.
Respondendo a perguntas por escrito, Albert elogiou em fevereiro a Fondation Cartier como independente e disse que um melhor controle das autoridades brasileiras seria mais eficiente do que um boicote ao ouro. Ainda assim, Albert criticou o uso da imagem no site da Cartier, dizendo por e-mail em abril que os Yanomami não haviam concedido permissão para seu uso e que o joalheiro não estava financiando nenhum projeto de reflorestamento.
Quando se trata de adquirir ouro, a Cartier diz que a grande maioria é comprada reciclada e a empresa está em conformidade com os padrões do Responsible Jewelry Council, que se descreve como a principal organização mundial de definição de padrões de sustentabilidade para a indústria de joias e relógios.
Com o ouro, no entanto, é quase impossível provar a proveniência, já que muito material ilegal se infiltra nas cadeias de suprimentos globais. E os líderes Yanomami deixaram claro que acreditam que o ouro está na raiz dos problemas do grupo.
“Existe alguma responsabilidade na compra deste ouro?” Ivo Makuxi, o advogado do conselho indígena, perguntou sobre o papel da Cartier em uma indústria que prejudicou os Yanomami. “A empresa respeita os direitos indígenas?”
Adicionar aos favoritos o Link permanente.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *