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Litigância climática corporativa e agenda ESG

No Brasil e no mundo, os debates sobre o movimento da litigância climática são crescentes. Para a ONU, a expressão remete a um importante instrumento destinado ao combate das mudanças climáticas, materializado por meio do uso de estratégias e ferramentas jurídicas – judiciais ou extrajudiciais – que buscam a efetivação das obrigações relacionadas ao clima[1].

A pauta tem ganhado avanços significativos. Recentemente, em março de 2023, a Assembleia Geral da ONU aprovou uma resolução histórica. O enunciado da organização pede para que a Corte Internacional de Justiça (CIJ) manifeste-se, determinando se os governos têm a obrigação legal de proteger as pessoas do aquecimento global, bem como se o descumprimento dessa responsabilidade seria passível de efeitos e repercussões legais.

Diferentemente dos litígios climáticos direcionados a governos e entes públicos, cujos grandes cases e fundamentos jurídicos estão em estágio relativamente avançado, o litígio climático corporativo é o desafio da vez na corrida pela mitigação, adaptação e reparação de danos e violações a políticas e normas ligadas às mudanças do clima.

Entre outros fatores, isso se deve à superveniência e instauração de ações e demandas neste tema em face de corporações, instigando especialistas de todo o mundo a analisarem a pauta com mais detalhes.

Um desses casos é a ação da ONG ClientEarth na Justiça britânica, envolvendo membros do Conselho de Administração da petrolífera Shell e suas responsabilidades e deveres de diligência sobre riscos climáticos.

Outro caso que vem contribuindo para o impulsionamento do tema é o Lliuya versus a empresa de energia RWE (Rhenish-Westphalian Power Plant). A ação corre na Alemanha e trata da responsabilidade civil ambiental por emissões poluentes e pelo derretimento de geleiras na cidade de Huaraz, no Peru.

Além desses, há outros exemplos que indicam uma relação da litigância climática com o tema ESG, conforme apontam os registros do Climate Change Litigation Bases[2], do Sabin Center for Climate Change Law, vinculado à Universidade Columbia, nos EUA. No referido banco de dados, podem ser verificados processos e representações – inclusive extrajudiciais – instaurados perante a OCDE, com efeitos para o ambiente regulatório e a governança corporativa.

Um dos casos considerados litígio climático corporativo pelo Sabin Center é o da ONG polonesa Development YES – Open-Pit Mines NO. No episódio, suscitou-se ao Ponto de Contato Nacional da OCDE, na Polônia, a notificação à empresa Group PZU S.A. A iniciativa questionou as práticas corporativas de meio ambiente, direitos humanos e due diligence, que, apesar de constantes das Diretrizes da OCDE para Empresas Multinacionais, não teriam sido observadas pela empresa. Em especial, o caso deu destaque a gestão e a divulgação de informações relacionadas aos riscos e impactos climáticos.

O requerimento resultou num acordo, ocorrido em 2019, entre a ONG e a empresa polonesa. Sob a chancela da OCDE, ficou consignado que a Development YES deveria se alinhar às Diretrizes da organização internacional, de modo a implementar e comprovar práticas consagradas, como o framework Global Reporting Initiative (GRI) sobre reporte de fatores ESG, abarcando o tema de emissões e riscos climáticos.

A propósito do assunto, vale sublinhar que o Brasil possui um Ponto de Contato Nacional (PCN) voltado à implementação das Diretrizes da OCDE para Multinacionais. O PCN Brasil foi criado em 2003 e revisado pelo Decreto Federal 11.105/2022.

Dado o aumento de casos desta natureza, o movimento de litígios climáticos em face de empresas privadas aumenta em complexidade. Invariavelmente, verifica-se que os fundamentos jurídicos desses litígios se vinculam a potenciais violações ou omissões diante de deveres corporativos muito afeitos às diretrizes consagradas pela atual agenda ESG (Environmental, Social and Corporate Governance).

A partir do repositório do Sabin Center, há iniciativas que questionam temas como publicações enganosas ou práticas de greenwashing em relação à divulgação de metas de zero carbono. O mesmo pode ser dito quanto ao oferecimento de serviços ou produtos ditos “neutros”, nos casos de emissões poluentes, sem evidenciação ou padronização concreta.

Outras demandas estão sendo ligadas ao chamado disclosure em matéria ambiental, direitos humanos e riscos relativos às mudanças climáticas. Nessa linha, podem ser destacadas, em especial, as práticas de divulgação, transparência e prestação de contas no âmbito de deveres fiduciários e devida diligência corporativa.

Esta inter-relação entre agenda ESG e deveres corporativos – arriscamos a afirmar – muito provavelmente terá influência decisiva nos rumos da denominada litigância climática corporativa nos próximos anos.

A despeito da força desses casos e das movimentações iniciais em matéria de litígios climáticos corporativos, observa-se que a vinculatividade normativa de objeto e conteúdo dessas demandas ainda é controversa. Muito disso reside no fato dessa temática pôr em relevo um caminho do meio entre o direito comercial, o direito constitucional-administrativo e ambiental, além dos standards internacionais, indicando mecanismos próprios de atuação.

Nasce daí o desafio de delinear objetivamente acerca do fundamento normativo a que se atribuirá a potencial violação ou omissão, ou, se for o caso, o enquadramento da responsabilidade empresarial em matéria climática. A questão é nada fácil. Em especial, a ausência de uma base normativa clara, no que diz respeito às eventuais violações de empresas contra políticas e normas climáticas, tende a dificultar a evolução e a consequente resolução dos casos de litigância climática corporativa.

Ademais, há situações em que a agenda ESG não é integrada aos fundamentos das ações, sejam elas judiciais ou extrajudiciais. Nessas hipóteses, a regra é o não reconhecimento da configuração de deveres corporativos ou que apontem para a responsabilização de empresas por omissões ou danos em matéria de clima. Esse contexto, por si só, evidencia a pertinência do uso estratégico da agenda ESG para a litigância climática corporativa. Esta agenda pode contribuir – e muito – para o desafio de enquadramento do papel corporativo para o clima.

Com isso, constata-se a necessidade dos Estados nacionais e da comunidade internacional regulamentarem, de forma estruturada e específica, a matéria de deveres corporativos climáticos de empresas e atores privados. Especialmente quando se tratar de Estado signatário do Acordo de Paris, como o Brasil. Em vista dessas mesmas lacunas normativas e de fundamentação, sejam elas nacionais ou internacionais, a consideração do litígio climático corporativo também provoca o (re)pensar do regime jurídico comercial. Tarefa crucial para se avançar na pauta.

No Brasil, no campo de instituições financeiras e bancos privados, as resoluções publicadas pelo Banco Central são exemplos que evidenciam os deveres corporativos com forte viés da agenda ESG. Ganham destaque os deveres fiduciários da Política de Responsabilidade Social, Ambiental e Climática (PRSAC), conforme a obrigação fixada pela Resolução 4.945/2021. Outro movimento de destaque é a ação da Conectas Direitos Humanos em face do BNDESPar, indagando a sua subsidiária quanto à ausência de protocolo de controle nos investimentos em empresas com grandes emissões de gases de efeito estufa.[3]

No mesmo sentido, deve se dar enfoque à Lei 6.404/1976, conhecida como Lei das S.A., que traz previsões legais expressas a respeito do “dever-poder” do controlador no que diz respeito à função social dos meios de produção.

Em seus artigos 116, parágrafo único, e 154, respectivamente, a Lei das S.A. estabelece que o acionista controlador deve usar seu poder para que a companhia realize seu objeto e “cumpra sua função social”, com responsabilidades perante “a comunidade em que atua”. De acordo com a lei, o controlador, além de respeitar os interesses da companhia, deve “satisfazer exigências do bem público e da função social da empresa”.

A função social consiste no dever fundamental de o proprietário dar à propriedade privada uma destinação social adequada a um determinado objetivo. No plano societário, ela está relacionada ao poder (econômico) de controle empresarial.

A regra se aplica ao poder que o administrador ou um corpo de administradores detêm de dispor dos bens que estão sob a sua responsabilidade. Enquanto o poder econômico é gênero, o poder de controle é espécie deste gênero. Em tese, o destinatário do poder de controle se torna o senhor da atividade econômica, organizando e dirigindo a produção, incumbindo-se em deveres perante empresa e sociedade.

Com isso, verifica-se que, na mesma proporção que reconhece e tutela o poder econômico da empresa, a lei endereça ao este mesmo poder uma finalidade social. É dizer, a lei sacramenta que a propriedade privada (inclusive a de produção, leia-se, a companhia) deve receber uma destinação social adequada, ou seja, ter um sentido diante da organização econômica nacional.

Essa finalidade é dada pela Constituição de 1988. Seguindo as Constituições brasileiras anteriores, a CF/88 corporifica e define uma “ordem econômica”. Esta ordem nada mais é do que a indicação dos interesses e da predominância que guiarão a vida econômica e política da nação. Trata-se de uma organização política que rege a estrutura econômica nacional.

Ao fazer essa distinção de interesses, a CF/88 não só reconhece a legalidade do poder econômico (da qual o poder de controle é espécie), como, também, impõe uma finalidade a ele, elegendo, para isso, uma determinada forma de capitalismo e de mercado. O coração desta definição está na leitura sistemática dos arts. 3.º e 170. A regra expressa nesses dispositivos e incisos constituem “normas-objetivo”, estruturantes da ordem econômica eleita pela Constituição. Assim, o texto constitucional traça um projeto de nação, cujo objetivo é assegurar a todos a “existência digna”. A organização dos mercados e do poder econômico que os formam são instrumentos desse projeto.

Ao incluir a defesa do meio ambiente nessa organização econômica (art. 170, III), a Constituição deixa espaço para que a emergência climática e as suas repercussões passem a ser consideradas como elemento estruturante desse projeto de nação.

Com efeito, qualquer exercício do poder econômico que excetue o meio ambiente e/ou a finalidade social dos meios de produção deixa de ter legitimidade. Isso leva à fácil constatação de que a função social da companhia, tal como transplantada na Lei das S.A., atua como um modelo de duty of care também contra riscos e danos climáticos. Isto é, entre os demais deveres corporativos, igualmente residem as obrigações referentes aos riscos e danos climáticos.

Essa conclusão autoriza a sustentar que a agenda ESG constitui um ferramental da efetivação da função social da companhia. A função social é um “dever-poder” do controlador, sancionável pela ordem jurídica. Em última análise, é seguro registrar que os deveres e as diretrizes norteadas pela pauta ESG, revestidos pela função social reconhecida em nível constitucional e infraconstitucional, revelam-se como instrumentos legitimadores do poder de controle empresarial, frente aos desafios contemporâneos do litígio climático.

Nessa perspectiva, a agenda ESG deteria um especial papel de impulsionar e até mesmo determinar o campo de discussão dos deveres jurídicos corporativos ligados à mudança do clima, assim como de catalisar o caráter orgânico do regime jurídico comercial, fazendo com que a noção de poder de controle e, respectivamente, a de empresa sustentem as bases para o movimento de litigância climática corporativa.


[1] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU. Global Climate Litigation Report 2020 Status Review. 2020. Disponível em: Acesso em: 27 abr. 2023.

[2] Repositório disponível em: Acesso em: 27 abr. 2023.

[3] Sumário executivo da ação disponível em: Acesso em: 02 maio 2023.

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