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‘Catorze camelos para o Ceará’, um livro seminal sobre o princípio da ciência no Brasil

O jornalista Delmo Moreira escreveu um livro seminal sobre os primórdios da ciência no Brasil. “Catorze Camelos Para o Ceará” (Todavia, 280 páginas) trata da primeira expedição genuinamente brasileira para conhecer a geografia, biologia e antropologia do Nordeste e a etnografia dos indígenas do Amazonas. É muito mais do que isso, porém. É, antes de tudo, muito bem escrito e divertido. Ainda, por tratar das relações da corte de Dom Pedro II com os naturalistas e da percepção do sertanejo sobre si mesmo, o livro deveria estar no cânone das escolas que buscam explicar aos jovens a importância do conhecimento, bem como a história do Ceará e do Amazonas.

A expedição era composta pelo escritor meio-cafuzo Gonçalves Dias; o físico e engenheiro Barão de Capanema; o médico, botânico e conselheiro do imperador Freire Alemão; o pintor José dos Reis Carvalho; e 23 outros naturalistas e ajudantes. Batizada de Comissão Científica de 1859, foi pejorativamente apelidada pelos deputados conservadores de “Comissão das Borboletas”, em uma tentativa de diminuir o esforço de conhecer a natureza Brasileira. Foi ainda apelidada de “Comissão de Defloração” (em vez de “Comissão de Exploração”) em função do rastro de escândalos que os cientistas namoradores deixaram por onde passaram. 

Delmo Moreira | Foto: Reprodução

Delmo Moreira narra a partir de cartas, diários, documentos produzidos pela comitiva e documentos históricos. Sua prosa é tão envolvente e a vida do sertão tão interessante que o leitor se esquece do fato mais absurdo e curioso, que apenas abre e fecha a história: Dom Pedro II encomendou 14 camelos da Argélia para povoar o Ceará, com a intenção de substituir as mulas como animal de carga. A história da Comissão de 1859 é tão envolta em vexames, fiascos, morte e dificuldades que os camelos foram praticamente esquecidos, mesmo tendo se adequado perfeitamente ao Cariri cearense. 

A expedição

O livro inicia narrando a compra, embarque e aclimatação dos camelos (na verdade, dromedários) argelinos. O animal, conhecido no Sahara como “o navio do deserto”, foi apenas a primeira das excentricidades grandiloquentes financiadas por Dom Pedro II para a expedição. O imperador que fundou o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) era um genuino amante da ciência — financiou inventores, cientistas e museus. Entretanto, nos anos 1850, o monarca sentia profunda irritação com as publicações “científicas” sobre o Brasil. 

O expedicionários europeus — muitos nunca visitaram o Brasil — retratavam um país bárbaro. As recompensas oferecidas pelas cortes na Europa eram lucrativas e, quanto mais bombásticas as revelações, maior o impacto na nascente comunidade científica. Charlatões começaram a ser atraídos “o desbravamento da terra selvagem”. Um deles escreveu que os niams-niams (uma “raça” de africanos com cauda) foram trazidos como escravos e podia ser encontrados no interior.

Dom Pedro II era um entusiasta da Ciência e financiador dos naturalistas | Foto: Reprodução

Após a Guerra Civil Americana, quando a escravidão foi proibida nos Estados Unidos, fazendeiros do sul tiveram interesse de entrar no país pelo Rio Amazonas e transformar a floresta em uma imensa plantation de algodão movida à mão de obra escrava, legalizada no Brasil. O contexto mexeu com os brios de Dom Pedro II ao mesmo tempo em que incentivou o fechamento das fronteiras ao norte para visitantes estrangeiros. 

A solução encontrada foi financiar a pesquisa brasileira. Foram selecionados para a missão os colegas do IHGB, os cientistas mentores do monarca, e membros da Marinha Brasileira. A lei que destinou orçamento para a comissão levou apenas 14 dias para ser aprovada, mas o grupo passou 972 se preparando. Além de camelos, o grupo comprou aparatos para a viagem e instrumentos científicos de ponta na Europa. O valor total empenhado foi de 3.200 libras — quantia o suficiente para comprar a liberdade de 8.000 escravos. 

Quando a comitiva finalmente chegou à Fortaleza, foi recebida com mistura de estranhamento, curiosidade, medo e animação. O que os cearenses ouviram era que o imperador tinha interesse nas relíquias enterradas pelos jesuítas, expulsos do Brasil por marquês de Pombal em 1759, e em levar o ouro da terra. Ninguém acreditava que aqueles estranhos homens tinham deixado seus gabinetes e laboratórios em Paris para catar sementes, analizar a composição do solo e observar as estrelas. 

Muitos dos 26 membros da comitiva tinham inimizades por uma ou outra razão, e estavam unidos sob a direção de Freire Alemão, um homem da ciência, sem interesse por impor a ordem ou hierarquia. Logo na chegada, o grupo se separou entre a casa oficial, alugada pelo império, e o Sobradão da Lagoa, cedido por um rico fazendeiro local. Na casa da Lagoa, Capanema, Dias e outros exploradores se revezaram entre os trabalhos e o cortejo das moças de todas as classes sociais — um escândalo para a cidadezinha de 16 mil habitantes. 

No Rio de Janeiro, os conservadores atacavam a missão com argumentos muito semelhantes aos que se ouve hoje, quando recursos são destinados à pesquisas que não geram uma serventia prática imediata. “Por que gastar dinheiro estudando o que está distante quando há tantos problemas para serem resolvidos aqui perto?” Este era o início do discurso que causaria o corte do financiamento da missão, deixando os cientistas mais importantes do Brasil depauperados e isolados no sertão.

O Sertão

Após seis meses de estudos em Fortaleza e arredores, a comissão se dividiu em três. Cada um escolheu seu roteiro e combinaram de se encontrar no natal em Crato, para fazer um balanço dos trabalhos. Freire Alemão, o zoólogo Manuel Ferreira Lagos e o pintor Reis Carvalho partiram pelo vale do rio Jaguaribe. Dias, Capanema e o engenheiro João Martins da Silva Coutinho foram pelo centro-sul da província. Os marinheiros da seção geológica e astronômica do matemático Raja Gabaglia foram pelo litoral. Os dromedários ficaram próximos a Fortaleza, emprestados para que agricultores os testassem no transporte da cana. 

Freire Alemão, Lagos e Reis Carvalho foram impactados pela miséria do sertão. Viram crianças selvagens em casebres de folhas, a banalidade da fome, a maldade dos donos de escravos ser ensinada às crianças da próxima geração. A seca, que em 1877 mataria 4% de toda a população do Brasil, ainda era desconhecida pelos cariocas. O médico Freire Alemão mal podia fazer seu trabalho botânico, pois tinha de atender a infinita fila de doentes. A cegueira, o bócio, a “congestão” e os males da desnutrição afogavam o sertão. Os cearenses falavam uma língua diferente (curiosamente mais próxima do latim — em vez de “trabalhar”, diziam “laborar”). Se consideravam o Brasil, enquanto se referiam ao Rio de Janeiro como a terra estrangeira. 

No povoado de Lavras, a viagem de Freire Alemão ganha um tom sinistro. “Já passava de meia-noite quando ouviu um canto grave vindo da igreja. Ouviu o tinido metálico das disciplinas, as lâminas de ferro afiado usadas pelos penitentes para se martirizar. […] A procissão passou pela calçada, o canto se transformou num gemido fundo e uníssono, puxado por um negrocom as ceroulas arregaçadas. Batia forte no peito com um tijolo enquanto pedia esmolas”. Aquelas eram as penitências, introduzidas anos antes pelo fanático religioso Padre Agostinho. Na manhã seguinte, a igreja estava coberta de sangue até a altura de um homem.

Gabaglia, na comissão astronômica e geológica, montou o primeiro observatório meteorológico do Nordeste. Em suas anotações, ficou martirizado pela indigência: “Nos atormentam a quantidade de pobres, órfãos, aleijados, cegos e presos”. Em contraste com a penúria, a natureza riquíssima da região litorânea. “A seca não é suficiente para explicar tanta miséria.”

Quem ajuda a compreender a razão da pobreza são Dias, Capanema e Coutinho. O trio, com seus ajudantes, se envolveram em conflitos políticos durante todo o trajeto, por se recusarem a submeter-se às vontades dos coronéis e políticos locais. O pagamento da comissão, que deveria ser repassado em nome da coroa pelo presidente da província, ficou retido. Para contra atacar, os Dias e Capanema publicaram artigos satíricos nos jornais com que colaboravam, ridicularizando os donos do poder local. Em sua coluna Os Ziguezagues, no Jornal do Comércio do Rio de janeiro, Capanema escreveu com humor corrosivo sobre a política cearense sob o pseudônimo de Manoel Francisco de Carvalho.

No dia da eleição, estavam em Telha, e foram pegos em uma guerra entre conservadores (caranguejos) e liberais (chimangos), que acabou em 14 mortos e 30 feridos a bala. A violência era menos motivada por ideologia do que pela disputa de territórios entre duas famílias políticas. “A mesa eleitoral era o fundamento de toda a vida partidária. Feita a mesa, está feita a eleição”, escreve Raymundo Faoro sobre o período conhecido como “eleições do cacete”, iniciado em 1840. Quem controlava o local da votação, podia falsificar cédulas eleitorais, selecionar e obrigar os eleitores ao que bem quisessem. 

Reunião

Doentes, pobres, enlouquecidos pela sífilis, a comitiva se reuniu no Crato — alguns chegaram apenas um mês após o combinado. A qualidade da produção científica era inquestionável. Freire Alemão catalogou novas espécies de plantas o suficiente para montar o compêndio Flora Cearensis. Algumas das propriedades observadas em plantas como a Libidibia ferrea são exploradas pela indústria farmacêutica e cosmética até hoje. 

Porém, a comissão já estava havia mais de um ano no Ceará e não encontrara tesouros para anunciar. Não importava quantas borboletas descrevessem, intuiu Capanema, o mais preocupado com a própria reputação. Os pobres sinais de ouro que coletou em Baturité eram notícia velha — ali, já existiam terrenos explorados com pouco proveito há mais de um século. O medo do ridículo se abateu sobre os expedicionários.

Fortaleza, aquarela de José dos Reis Carvalho | Foto: Reprodução

Os viajantes sabiam que estavam sendo difamados, caluniados e ridicularizados injustamente em discursos na corte. Um camelo havia se acidentado e morrido no transporte da cana, e o episódio foi atribuído à imperícia de Gonçalves Dias como cavaleiro. Dias, que nem estava na ocasião, ficou louco de raiva. Caixas com amostras coletadas pela comitiva foram enviadas por Capanema pelo mar, em um barco chamado Palpite. O Palpite, entretanto, naufragou no caminho até o Rio, e o episódio foi retratado na corte como se fosse proposital. Afirmaram que o barão quis esconder seu fracasso com a tragédia. 

Para sondar a situação, Freire Alemão, que era conselheiro de Dom Pedro II e líder da expedição, voltou sozinho ao Rio de Janeiro. Em reunião com o imperador, Freire Alemão relatou toda a situação e pediu demissão. Dom Pedro II recusou, e ordenou que a jornada continuasse até a data prevista. 

Gonçalves Dias na Amazônia

Com recursos cortados, o grupo não pode seguir o caminho previsto. Gonçalves Dias foi o escolhido para fazer sua viagem amazônica pelo Rio Negro, ao longo de 55 dias. No caminho, a paisagem se transforma radicalmente, e Dias também. O poeta era atormentado por um casamento infernal, sofria de saudades de seu primeiro amor, estava depressivo pela morte de uma filha de dois anos de idade. A floresta e os indígenas, entretanto, o curaram. 

Dias fez estudos etnológicos, colecionou objetos, tentou decifrou novos idiomas, registrou costumes, pesquisou movimentos migratórios das etnias e entendeu os brasileiros da amazônia melhor do que qualquer outro, 50 anos antes de as explorações britânicas tornarem a região famosa no mundo todo. Gonçalves Dias, que era um quarto indígena, se identificou com o povo do rio: “Ótima gente! Apaixono-me deles, ponho cuêio (espécie de cueca usada pelas etnias do xingu) e vou para o mato, traduzir meus indignos versos em língua de caboclo!”, escreveu ele. Não se sabe, entretanto, qual poema ele escolheu para declamar na língua indígena. 

Casal Cearense em viagem, por José dos Reis Carvalho | Foto: Reprodução

Legado

Ao fim da expedição, os dromedários foram doados aos fazendeiros – não mais 14, mas 20 deles, que tinham se reproduzido no Ceará. Nos anos seguintes, entretanto, largados aos cuidados dos vaqueiros escravizados, os camelos definharam. Não foram usados como animais de carga, servindo apenas como atração nos zoológicos particulares dos coronéis. Em 1860, um ano após a chegada dos dromedários ao Ceará, a Austrália fez experimento semelhante. Hoje, o governo australiano estima que existam 750 mil camelos selvagens, causando prejuízos a fazendeiros por comerem as lavouras e pisotearem nascentes. 

A maior parte das amostras coletadas nos cinco anos de missão foi doada ao Museu Nacional do Rio de Janeiro, onde ardeu no incêndio de 2018. Eram 14 mil amostras apenas no herbário, coletadas por Freire Alemão. Milhares de documentos históricos colhidos nas câmaras das cidades do interior do Ceará. Centenas de objetos e registros dos mitos indígenas feitos por Gonçalves Dias. 

Para a perplexidade completa da comissão, seu retorno com todos os materiais coletados foi considerado um estrondoso sucesso. “A expedição, sempre debaixo de desconfiança provinciana, iletrada e rancorosa, cumprira o objetivo de coletar um rico material para estudos e classificações e terminava o ano reconhecida pelo trabalho”, escreve Delmo Moreira. 

Exposições das coletas foram organizadas e trabalhos foram publicados, dando o pontapé inicial na ciência brasileira. “O trabalho de Capanema e Gabaglia refutou teorias em voga, como a de que bastaria reflorestar picos e montanhas para que as chuvas voltassem” – é um exemplo de diálogo com a comunidade científica internacional estabelecido pela comitiva. Os diagnósticos da Comissão sobre o drama nordestino iniciaram a conscientização na Capital sobre os problemas regionais da seca. Em 1922, o Brasil destinava 2% de seu orçamento para enfrentar a calamidade, construindo açudes.

Os relatos de Dias, Freire Alemão, Capanema, Gabaglia e Lagos foi reunido na obra Trabalhos da Commissão Científica de Exploração, mas a obra foi censurada. “Já estava impressa, pronta para circular, quando o governo decidiu expurgar partes dos trabalhos dos cientistas. Os trechos com críticas aos entraves administrativos e os que faziam referências à miséria da província foram cortados. O Ministério alegou que a ‘publicidade inoportuna’ iria repercutir mal nos círculos europeus”. 

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